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Ao mestre com carinho

Uma entrevista com Januário Garcia

Um olhar sobre a cultura a política

e o Movimento Negro


Lá se vai o Mestre. Januário Garcia. Nos deixa, vítima de Covid 19 e recebe a solidariedade e declarações de reconhecimento de amigos. Admiradores que foram para as redes sociais se manifestar enfatizando sua importância pela luta contra as desigualdades raciais, sua maestria enquanto fotógrafo, mas acima de tudo, pelo ser humano generoso e alto astral que sempre foi.


Um mestre

Virgílio de Souza - jornalista

“Desde que conheci Januário – e lá se vão 35 anos -, sempre o chamava de Mestre. Ele com aquele sorrisão irradiante, com aquele olhar vivo e aconchegante sempre respondia: “Mestre coisa nenhuma, serei sempre um aprendiz”.

Nesse momento de tristeza por sua passagem lhe presto essa pequena homenagem trazendo declarações sinceras de amigos que deixaste por aqui.

Serás sempre e eternamente um mestre. Obrigado por sua existência"


Grande legado

Berg Silva - fotógrafo

"Januário Garcia. Você tem que conhecer esse cara!"

Foi o que ouvi quando comecei a fotografar.

Um negro militante, genial na arte de sensibilizar os olhares e corações.

Fez capas de discos, o suprassumo da fotografia dos anos 70.

"Comprei minha casa no Catete e criei meus filhos com esses trabalhos".

Porra Janu, como eu era seu fã e gostava tanto quando você falava comigo como se eu fosse um cara que almejava alcançar um pouco do que você foi.

Como profissional, como líder e como pai. Vai na luz Mestre.

Você deixou um grande legado. Obrigado por tudo.

Axé!


Um Guru

Ierê Ferreira - fotógrafo

"Mais um dia de tristeza com a notícia da partida do GRANDE MESTRE, Janúario Garcia. Sempre segui seus passos na arte da fotografia e na luta contra o racismo, foste para mim um Guru. Obrigado amigo por ter sido esse GIGANTE gentil e de alma caridosa, sempre disposta a ensinar e sempre com o olhar atento como devemos ser. Descanse em paz e que os DEUSES confortem nossos corações e de toda a sua família".


Uma referência

Paulinho Sacramento - fotógrafo

"Ô Paulinho, esse papo de ter que ter câmera pra fotografar é conversa fiada. Você faz a fotografia com seu olhar e guarda aquele momento na sua mente".

Tá bem difícil pra mim, uma das minhas referências se foi.

A gente sempre se divertia e o aprendizado era certo.

Obrigado por tudo, mestre Januário Garcia".


Gratidão

Marcelo Reis - Jornalista

"Obrigado Mestre .Obrigado nosso decano . Obrigado amigo. Siga na luz .A nossa Cultura vai sentir muito a sua falta. A sua Cultura. O seu olhar. O seu sorriso. A sua contribuição para o Movimento Negro. A sua contribuição para a MPB. A sua contribuição para nossa sociedade.

Que o Orum o receba com alegrias.

Valeu Januário Garcia – Presente".


Perda Devastadora

Júlio Tavares - professor

Entre tantas perdas, devo dizer que a partida de Januário Garcia é profundamente devastadora. Siga em PAZ querido irmão, companheiro, parceiro intelectual e de militância. Um exemplo de artista das visualidades, homem público e militante histórico do Movimento Social Negro Brasileiro !!!!

CEAP - NOTA DE PESAR

É com pesar e dor que a equipe do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas – CEAP vem a público manifestar a imensa tristeza que nos alcança com a morte do companheiro JANUÁRIO GARCIA, ocorrida em 30 de junho de 2021, vítima de Covid-19.

Januário esteve presente na formulação e ativismo de todas as lutas recentes do Movimento Negro construído, por meio do seu trabalho como fotografo toda a iconografia da memória das nossas conquistas e adversidades. Mestre exemplar e querido formou gerações de fotógrafos negros, produziu arte sem desvio da sua consciência e da sua responsabilidade com o seu povo.

Januário Garcia

Um olhar sobre a cultura, a política

o Movimento Negro,

Setembro de 2004: Abertura da Exposição da Assembleia Geral da ONU – Organização das Nações Unidas - realizada em Nova York, um dos eventos mais concorridos do mundo. Momento importante e de holofotes para várias autoridades que conduzem o destino de milhões de pessoas em todo planeta. A convite do Clube da Língua Portuguesa da ONU, no ano da Celebração da Língua Portuguesa Contra a Escravidão e por Sua Abolição, foi montada no hall da parte diplomática da ONU, onde são recebidos os chefes de Governo e de Estado a exposição “Everday Laife Afro Brazilians” (O Cotidiano dos Afro Brasileiros), que atraiu olhares de grande parte das maiores autoridades do mundo, dentre as quais se destacavam G,W Bush, Kofian Anan, Lula, Chirac, e Putim.



Em meio a todos aquelas celebridades cercado de flores e rosas havia a figura carismática do autor daquelas fotos que olhava atento aos olhares admirados e atentos ao trabalho que realizara. Era Januário Garcia, um negro alto, sorriso aberto e cativante que nunca soube ser “negro sim senhor” de ninguém. Estar ali, era uma grande façanha para menino magrinho nascido em Belo Horizonte, e que aos 14 anos, entrou num trem e veio parar na Estação de Dheodoro, no Rio de Janeiro. Daquele menino que pisou no Rio, em 1954 ao momento em que seu trabalho era reconhecido e admirado por toda aquela elite mundial, toda aquela gente importante, se passaram exatos 49 anos, como reflete o fotógrafo:

- Naquela exposição eu estava cercado de flores e rosas, mas minha vida foi uma vida de muitos espinhos. As flores não me foram dadas, eu tive que plantá-las e colhe-las. Nasci com o dom da fotografia e desde de a infância eu soube que seria fotografo e isso se transformou em minha maior inspiração. Na vida você tem que olhar e tomar uma decisão, pois nem tudo depende você. Na fotografia, se você não ficar observando atentamente, você perde o foco. Olhe e aperte o botão, o resultado você vê depois. Como nas decisões da vida, fotografar também é um momento de decisão. Na vida e na fotografia, tudo depende de você.

Januário tem lá suas razões para se queixar de seus espinhos e ao mesmo tempo para agradecer as flores que soube cultivar. Perdido nas ruas do Rio, tinha tudo para se transformar em mais uma das Almas Encantadas das Rua do Rio, como escreveria João do Rio, mas aos 14 anos, acabou indo parar no SAM - Serviço de Assistência aos Menores da Escola XV, em Quintino. Um órgão do governo criado em 1941 por Getúlio Vargas. Muitos reclamavam que aquilo era um inferno e quem entrava se marginalizava. Januário deu sorte, pois na época estavam sendo selecionados meninos para a Escola de Paraquedismo e ele acabou sendo um dos selecionados.

Dedicado, ativo e curioso, acabou se envolvendo com o Movimento Estudantil, composto por pessoas de diversas correntes políticas, dentre elas, pessoas do Partido Comunista do qual se aproximou e quis discutir com as lideranças do partido o tratamento que o partido dispensava em relação às questões raciais. Naturalmente, foi olhado de lado e causou perplexidade. Em 1963, quase dez anos após sua chegada, montou com Oaquim Araújo, (ex-dirigente do Flamengo, nos anos 90) o Comitê de Apoio a Almicar Cabral no Largo do CACO.


Veio o Golpe de 64, o racismo ou qualquer tipo de manifestação racial estava enquadrado na Lei de Segurança Nacional e era crime. Com isso, acabou tendo problemas com nossas “autoridades constituídas” por fazer parte dos frequentadores do Calabouço, ponto de encontro do Movimento Estudantil, onde promovia e ajudava a promover discussões sobre as questões raciais, o que lhe custou quase dois anos prisão.

Hoje, aos 63 anos, Januário é um dos fotógrafos mais prestigiados do Brasil. Em seu portfólio, um acervo invejável com mais de 20 mil registros fotográficos sobre o movimento negro. Um verdadeiro tesouro que tem o registro da história dos negros e do movimento negro nestes últimos 30 anos. Em sua opinião, algo para a posteridade:


- Por trabalhar com fotografia um dia tive a ideia de fazer esses registros. Comecei a fotografar pessoas que se reuniam para discutir questões raciais. Quando me dei conta, percebi que tinha um farto material. Fiquei entusiasmado e resolvi investir nessa construção da memória visual do movimento negro. São pessoas que há 30 anos vem escrevendo uma história dentro da história do Brasil, e, por estarem dentro do processo, elas não têm a noção de suas importâncias no contexto social brasileiro, por isso, tendo a preservar esta história e essas pessoas no tempo e no espaço para que as futuras gerações possam conhecê-las visualmente e para não acontecer com elas, o que aconteceu com minha geração que só veio a saber que Carlos Gomes, Olavo Bilac, Francisco Braga, Juliano Moreira, Barão de Cotegipe, André Rebouças e Machado de Assis, dentre tantos outros, eram negros depois de passados muitos anos. Há uma nova geração de militantes que tiveram suas formações através dos partidos políticos e dos sindicatos, mas ainda encontramos muitos eu tiveram uma formação dentro das entidades do Movimento Negro, nos embates calorosos e nas grandes noitadas culturais do Agbara Dudu, em Madureira. Foram homens e mulheres que deram uma parte de suas vidas, sacrificaram horas com suas famílias, para construírem uma perspectiva futura para a nova geração de negros. Às vezes estou trabalhando nesse acervo e encontro fotos de algumas dessas pessoas e costumo dizer: esse foi fundamental, ajudou a fundar o IPCN, - Instituto de esquisa Negras -, o MNU – Movimento Negro Unificado-, , o Fala Crioulo, a Força Negra, o Movimento Simbá e tantas outras organizações que foram fundamentais em nossa caminhada. São pessoas que nunca perderam o “norte” da luta. Democraticamente viam suas propostas serem derrotadas nas assembléias, mas mantinham a unidade na diversidade, tudo porque são pessoas abnegadas que lutaram e lutam por uma causa das mais importantes neste país, que é a igualdade da sociedade sem pessoas segregadas. Este arquivo é de minha propriedade, mas na realidade, pertence a cada uma dessas pessoas que verdadeiramente ajudaram e ajudam a construir uma consciência racial nesse país.

Januário ao logo de sua vida fez vários trabalhos e ocupou diversos cargos importantes. Foi Assessor Especial do Governo Marcelo Alencar, presidente do IPCN, elaborou uma extensa pesquisa sobre os quilombos no interior do Estado do Rio que culminou na realização de um vídeo, um cd e um livro sobre a a história remanescente dos Quilombos no Estado do Rio de Janeiro. Foi diretor Cultural do Centro José Bonifácio, na Gamboa na gestão do então secretário Arthur da Távola, no primeiro governo César Maia. Trabalhou ainda em diversos jornais e revistas, mas sempre na condição de freelance, uma vez que sempre gostou de trabalhar de forma independente.

- Eu fujo dos patrões. Eles em sua grade maioria são todos brancos, escravocratas e perpetuam todas o preconceito e desigualdade existente – sempre repetia.

Capital Cultural – Em que consiste esse arquivo particular que você denomina de “Documento Brasileiro de Matrizes Africanas”?

Januário – São mais de 20 mil fotos, arquivos de jornais, panfletos, cartazes e tudo que conta a história do negro de 1975 para cá. Nesse momento estou numa parceria com a Fundação Cultural Palmares preparando um livro de 1980/2005 com relatos desses 25 anos sobre Movimento Negro. Pessoas que fazem parte dessa trajetória escreverão textos sobre a história do movimento nesse período. A importância do relato de cada uma delas é fundamental e elas estão preparando textos dentro do eixo temático do livro, O responsável por essa parte e o poeta Elle Semog. É um trabalho que considero importante porque muitas dessas pessoas já se foram e não tivemos a oportunidade de fazer o que estamos fazendo agora. Outras estão na minha faixa etária, mas nunca tiveram reconhecimento que sempre mereceram. Politicamente são pessoas muito fundamentais que ajudaram a repensar a questão racial. Se hoje temos os avanços sobre essas questões devemos muito a elas.

Capital Cultural – O mês de novembro é um mês curioso. Comemora-se simultaneamente o Dia Nacional da Cultura (dia 5) e, no dia 20, o Dia Nacional da Consciência Negra. Sua vida sempre esteve norteada por esses dois temas, como se um não fosse interligado e tivesse diretamente relacionado ao outro. Como andam as questões culturais e os problemas raciais em sua cabeça?

Januário - Curiosa e feliz essa relação. A leitura que podemos fazer é que o negro só é importante enquanto cultura. Não dá para pensar as manifestações culturais brasileiras sem a presença do negro e não podemos perder de vista que políticas culturais é vontade política. Como pensar nossa música sem Zé Ketti, Cartola, Clementina de Jesus; como imaginar o teatro sem Grande Otelo, Milton Gonçalves, Ruth de Souza, Lea Garcia, Lázaro Ramos e Tais Araújo, como falar em futebol sem mencionar Pelé, Ronaldinho, Adriano ou Paulo César Caju. O grande problema é que o negro culturalmente é bom, esportivamente é bom, é aceito e valorizado, mas quando as coisas se transferem para outras áreas se transformam em meros coadjuvantes do espetáculo, não é o elaborador nem tem um papel relevante no espetáculo. E o que é a cultura senão alguns “bons” elaboradores que dirigem e determinam quem deve e quem não deve, quem pode e que não pode. Quando o negro puder ser o elaborador e o produtor, talvez possamos perceber as mudanças reais em nossa política cultural, em nosso cotidiano. Isso me parece muito óbvio. Há alguns anos pensei o seguinte: De qualquer janela que quisermos ver o horizonte do Brasil certamente iremos nos deparar com a presença negra, sabe porquê? Simplesmente porque existe uma história do negro sem o Brasil, mas não existe uma história do Brasil sem o negro. Isso faz a diferença. O dia em que entendermos isso, teremos entendido tudo.

Capital Cultural – Mas essa é uma realidade que vem mudando, existem exceções onde o negro é o produtor, o elaborador...

Januário - Exatamente ai reside o problema. É claro que Pelé ter sido Ministro dos Esportes no governo Fernando Henrique, o Gil ter sido Ministro da Cultura, no governo Lula, o Muniz Sodré ter assumido a Biblioteca Nacional ou termos criado a Secretaria da Igualdade Racial são fatos que devem ser exaltados e não deve ter considerado uma coisa qualquer. São conquistas, de fato, importantes. O questionamento necessário é o seguinte: num país onde a maioria da população é negra esses casos esporádicos, essas exceções devem nos deixar felizes ou nos convidar para uma grande reflexão. Continuo achando que não se faz igualdade com exceções.

Capital Cultural – Está claro que essa é uma questão política, mas a grande maioria dessa classe dominante, dessa elite política, insiste que se trata de uma questão social e não racial. É a velha argumentação: se não vejo o problema ele não existe. O que fazer para mudar essa relação?

Januário – Esse raciocínio vem de alguns setores e de pessoas que estão no controle dessa grande nau chamada Brasil. O argumento mais recorrente por parte dessas pessoas de uns tempos para cá é que não temos um problema racial e sim social. Um argumento que, guardando as devidas proporções, não tem como ser questionado, pois reflete a mais pura verdade, e retrata a mais pura realidade não deixando dúvidas de que o negro é a base dessa pirâmide social. Se verificarmos a população de rua, a massa carcerária, as filas para atendimento médico nos postos de saúde e as pessoas que vivem completamente à margem, teremos lá, de forma que chega a ser vergonhosa os negros. Por outro lado, se olharmos para as grandes empresas, o número de alunos nas universidades e, principalmente nos cursos considerados de elite, os funcionários ocupando os cargos mais importantes nos shoppings de luxo, veremos a ausência do negros. A partir dessa ótica o argumento de que o problema é social é pertinente, mas acontece que no Brasil, o racismo adquire a “Ideologia de Dominação Social” e, nesse caso, essa ideologia produz políticas de segregação das mais diversas ordens. É preciso estarmos atentos para essa coisa de que o problema é de origem social, isso, na verdade é um grande engodo, uma grande falácia. Existe o que os sociólogos denominam de “Desigualdade Durável”. Esse fosso se amplia cada vez mais na sociedade brasileira, pois nem todo branco é pobre, mas todo pobre é negro. E mais uma vez não quero que me venham falar de raras exceções.

Capital Cultural – O Movimento Negro é muito criticado por uma parcela da sociedade que acha que há um excessivo radicalismo e algumas pessoas chegam a afirmar que tudo que defendem, trata-se na verdade de um Racismo Reverso. Qual análise você faz sobre essas insinuações?

Januário – Não existe nenhuma razão para o Movimento Negro ser rotulado de radical. Nós vivemos em uma sociedade em que a pratica da discriminação racial nos impede de sermos radicais. Não estamos numa sociedade em que a discriminação racial existia por força da lei, como ocorreu nos Estados Unidos ou na África do Sul. O que existe no Brasil é uma ditadura do pensamento único e qualquer um que vá em sentido contrário a esse pensamento será considerado radical. Penso também que quem domina, quem dá as cartas, criou seus argumentos, e suas próprias defesas para inviabilizar qualquer iniciativa relacionadas às discussões raciais. Todo movimento tem aquelas pessoas que são consideradas mais radicais, mas elas necessariamente não representam a totalidade do pensar de uma coletividade, de um grupo. Elas apenas fazem parte desse grupo. Quando as pessoas elegem os mais radicais para falar em nome de dos movimentos e dão uma importância muito grande ao que essas pessoas falam isso é uma maneira de deturpar. As decisões são tomadas de maneira coletiva e, necessariamente, as opiniões e propostas das pessoas tidas como mais radicais, necessariamente, não são as vencedoras. Fica parecendo que as pessoas ligadas ao movimento Negro não tem capacidade de discernimento e representam um bando de pessoas magoadas, rancorosas e que querem combater o branco. Essa é uma discussão direcionada, que não existe. O que os vários Movimentos Negros dos quais participei e aos quais conheço desejam é um país com menos preconceitos, com menos discriminação e no qual todos tenham direitos iguais e não uma sociedade onde um grupo tem todos os direitos e o outro todos os deveres.

Capital Cultural – A discussão sobre a Política de Ações Afirmativas e a implementação da política de cotas seria o caminho? Qual sua percepção sobre essa questão?

Januário – Essa é outra deturpação que vem sendo muito usada por alguns setores da sociedade que deseja que fique tudo rigorosamente como esta. Existem até intelectuais e acadêmicos de primeira linha que desde que se iniciou essa discussão sobre as cotas, já escreveram livros e vivem fazendo palestras, discursos e dando entrevistas sobre o tema, sem entretanto, mencionar a questão das Políticas de Ações Afirmativas. Algumas pessoas conhecem a realidade do negro na sociedade brasileira apenas através de livros e filmes ou de ouvir falar, mais ainda assim estão sendo muito bem remuneradas e ganhando altos salários em cima dessa temática e considero isso um absurdo. A discussão sobre a implementação do sistema de cotas é apenas a ponta do iceberg. Se a discussão sobre as cotas se transformou em tanta polêmica, imaginem quando começarem a serem discutidas as questões mais sérias, para acabar com o racismo e a segregação. Existe uma ditadura de um pensamento hegemônico branco e eurocêntrico na universidade brasileira. O medo dessas pessoas e uma transformação – o que já veio ocorrendo -, de outra forma de pensar, de outro pensar. Essa possibilidade assusta a essas pessoas pois eles perderiam espaço, perderiam o domínio da fala e com isso perderiam dinheiro e prestígio. À medida em que o Brasil for mudando na academia e em várias outros setores da sociedade essas pessoas ficaão mais agressivas, pois não querem perder o privilégio que sempre detiveram.

Capital Cultural – O Universidade é a melhor opção, o caminho para os negros ascenderem e conseguirem diminuir essa desigualdade?

Januário - A universidade brasileira está cheia de vícios, cheia de equívocos e o ensino piora cada vez mais. É uma instituição pensada pela elite e para a elite. A maior evidencia do fato é que pessoas que se dizem democratas, que se dizem justas oferecem resistência ao sistema de cotas. Essas mesmas pessoas que estão presentes nos finais de semana, vestidas de branco naquelas passeatas realizadas na Zona Sul, que protestam contra tudo, menos contra o racismo na sociedade brasileira. Não adianta haver alunos novos se o pensar na maioria dos casos é viciado e cheio de manias. O pior de tudo é o fato, de alunos, a nível de graduação, mestrado ou doutorado reproduzirem parte desse discurso. Nada é pior que alguém dentro da universidade afirmar que não tem opinião formada sobre as políticas de ações afirmativas e o sistema de cotas. Criamos a academia dos indecisos, os acadêmicos da omissão – poderiam até formar um bloco carnavalesco. Pessoas que participam de passeatas, que se dizem de esquerda, que dizem progressistas, se omitem na hora de opinar sobre um assunto tão importante. Pior que ser contrário e argumentar suas razões, mesmo que equivocas é se omitir, é repetir os vícios e colaborar para manter as coisas como estão. Mesmo com todas as barreiras impostas existem negros nas universidades comprometidos com a luta do Movimento Negro. Uma das políticas bem sucedidas foi o pré-vestibular para negros e carentes implantado em todo o Brasil. Já que a academia insiste em não mudar esse pensamento branco e elitista resta ao negro criar mecanismos para mudar o pensamento da academia.

Capital Cultural – Só quem sente na pele sabe a complexidade dessa sutil discriminação. Que nem é tão sutil assim. É, de fato, algo angustiante...

Januário – Em 1888 quando aboliram a escravidão, havia uma grande distância e muito atraso nessa relação entre dominantes e dominados e essa distância foi se perdurando ao logo da história. Podemos até ter diminuído essa distância, mas ainda estamos muito atrasados. É a famosa “Desigualdade Durável”. O poder continua nas mãos dos herdeiros dos senhores de latifúndio. Continua nas mãos de grandes conglomerados, das oligarquia, e pessoas que sempre ditaram as regras nesse país desde que ele foi invadido pelos portugueses. Os senhores só mudaram a postura, mudaram as maneiras e os mecanismos de dominação e exploração, mas eles continuam ai, em cada esquina, em cada emprego. Com o passar dos anos tivemos um aumento considerável da classe média, novas oportunidades, novos mercados de trabalho foram criados, mas não foram dadas novas oportunidades. Nossa discriminação, de fato, não é sutil, muito ao contrário, ela é escancarada, é nítida, cruel e angustiante. Só se passaram 117 anos da abolição da escravatura e você encontra em nossa sociedade muitos netos de escravos e muito neto de escravocratas. Nós negros sempre produzimos riquezas e sempre herdamos misérias. Agora criamos perspectivas e estamos partindo para mudar isso. Chega de falar em racismo olhando para o retrovisor. Estamos atentos a tudo que se passou, ao nosso passado, mas estamos olhado para frente e entendendo onde queremos chegar.

Capital Cultural – Você fez alguns capas de discos muito interessantes, dentre elas, “Muito” do Caetano Veloso; “Ubuntu”, de tom Jobim e “Eu Nasci Há dez Mil Anos Atrás” de Raul Seixas. Capas memoráveis para você e que marcaram o trabalho desses artistas. Existe uma fórmula para uma capa de sucesso?

Januário - Não complicar é a fórmula. Não querer inventar. Existe uma relação muito próxima entre o artista e o fotógrafo. Ambos tem grande responsabilidade para com o trabalho. Não podemos perder de vista que o sonho, o processo criativo, a inspiração é em última análise um produto a ser consumido. O artista representa naquele disco seu poder de criação, o que tem de melhor. Já ao fotógrafo cabe fazer a embalagem desse trabalho, transformado em produto. Você fica dias dentro de um estúdio acompanhando cada momento, cada movimento da gravação e captando tudo como se fosse uma antena. É preciso passar para o trabalho todo esse clima do disco. Imagina você que o Tom Jobim foi para Nova York gravou um disco produzido por Clauss Ogerman um dos arranjadores mais respeitados do mundo, e a Orquestra Sinfônica de Nova York e me entregou a responsabilidade de fazer a capa desse disco. O conceito era captar a imagem de um urubu que revelasse toda beleza, toda harmonia e musicalidade da obra de Tom Jobim, É uma das melhores capaz que fiz. Já em relação a capa do disco “Muito” de Caetano, a música Terra originou a capa. Para ele, terra é mulher, é mãe, então fotografei Caetano no colo de Dona Cano, sua mãe, sem que eles percebessem. Só cito esses dois exemplos para se entender um pouco como é o processo de criação nesse cenário. O bacana é a troca de experiência que rola durante esse tipo de convívio, Você curte, por exemplo, a música que o Nei Lopes canta, e curte a foto que você produziu. Isso é compensador. É bem legal

Capital Cultural - Qual sua relação com o Rio como um todo, e mais especificamente com o Centro da cidade?

Januário – O Rio é a cidade que escolhi para viver, mesmo com todos seus problemas, com todas suas mazelas, com todos seus políticos, eu gosto daqui. Se tem dois lugares que curto e que me renovam é andar no Aterro do Flamengo e no Centro da cidade. O Aterro pelo contato direto com a natureza – domingo de manhã, ar, sol, mar, calor, pessoas, tudo isso é algo que me proporciona muito prazer. Curto também caminhar aos domingos pela manhã no Centro, pois é uma viagem no tempo. Você descobre tantas coisas feitas pelas mãos dos homens que a gente não imagina. É muito legal você passar por uma Rua do Ouvidor ou Rua do Rosário vazia e poder ver parte da arquitetura antiga. O carioca precisa curtir o Centro nos finais de semana, conhecer o silêncio e a arquitetura do Centro.






Capital Cultural – Nascer, crescer, morrer. Assim levamos nossa existência. Qual a reflexão podemos fazer da vida?

Januário - Como posso querer entender a vida? Ela está ai solta, bela, leve com uma surpresa atrás de cada esquina. Tenho muitos aprendizados por ter visto e ouvido muitas coisas ao longo dessa minha existência. Nesse momento, me ocorre uma letra do Gonzaguinha que reflete bem minha história: “ Equilibrando a vida e a morte eu sou malabarista/ E já me chamam por ai de verdadeiro artista”. É mesmo isso, desde menino venho me equilibrando e levando da melhor maneira que posso. Ainda citando Gonzaguinha acrescentaria uma outra letra: “ E a vida, e a vida o que é diga - lá meu irmão -, ela é a batida de um coração ou uma doce ilusão”.

Penso que a vida só não tolera covardia. O grande livre arbítrio da existência é não sermos covardes. Não adianta você ter a melhor das intenções se você está pensando só em você, exclusivamente em você. Existe o outro. Existem os outros. Vivemos num mundo rápido, de movimentos acelerados e cada vez somos a ser levados a pensar no próprio umbigo. Não podemos ao longo da vida transformar as pessoas em degraus, porque o mundo gira e não somos senhores do destino, absolutamente não somos. Se você perceber bem, o grande mal das relações humanas reside no egoísmo. Você se coloca em primeiro plano, toma suas decisões totalmente alheio às circunstâncias que isso pode trazer. Temos a obrigação e o dever de respeitar o outro nas relações de trabalho, na relação com os filhos, com os amigos e com todas as pessoas que nos cercam e que passam por nossas vidas. Esse mundo do poder, do “status” é cruel e fictício. Precisamos entender que tudo é passageiro e o que resta, o que tem que ficar é a generosidade. Não podemos perder de vista que neste momento, neste exato momento, o mundo está girando. Posso não ter uma resposta e saber exatamente o que é a vida, mas sei como diria os mais antigos, que o mundo dá muitas voltas e minha vida e minha existência giram permanentemente.

Capital Cultural – Você fez referência ao destino. Você acredita no destino?

Januário - Acredito no fluxo e refluxo da vida. Tem coisa que não dá para explicar nunca. E, diante do que você não consegue explicar, diante do que você não consegue entender é melhor você se calar e observar. É melhor olhar, e, de alguma forma, tentar entender. Como na fotografia, é preciso focar, no sentido de procurar o melhor foco, de observar carinhosamente e ter paciência. Se você não tem explicações, esteja certo que a vida tem as respostas. É uma questão de tempo. Isso me remete a letra de “Viramundo” de Gilberto Gil e Capinan: “ Prefiro ter toda vida a vida, como inimiga a ter a morte da vida a minha sorte decidida”.

Capital Cultural – Quero agradecer seu tempo, sua generosidade, seu carinho e parabenizar por sua lucidez e sua luta contra a desigualdade racial. Tem mais alguma coisa eu você queira falar?

Januário - Quero agradecer ao Jornal Capital Cultural e a você Virgílio por essa oportunidade. Sua trajetória se assemelha à minha nessa questão de acreditar, de ir à luta. O jornal tem dado uma contribuição importante nessa questão das desigualdades raciais. Você não sabe, mas tenho lido excelentes matérias sobre essa questão no jornal. Li a entrevista da Zezé Motta, do Carlos Medeiros, do Ivanir dos Santos todos falando exatamente de ações afirmativas e do sistema de cotas. Penso que é isso, cada um a seu modo, vai colaborando, vai colocando um tijolo. É assim que tem que ser feito. Existe um compositor cujo nome eu não me lembro, que disse o seguinte: “Sonho são como deuses, quando não se acredita nele, deixam de existir!. Por isso sonhamos.


Essa entrevista que parece super atual foi concedida ao Jornal Capital Cultural em novembro de 2005


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