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Virgilio Virgílio de Souza

As ameaças que pairam sobre o bairro


“Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada” ...


Largo do Guimarães


Outro dia, e não faz muito tempo, do nada e sem nenhum motivo aparente, um deputado mal-humorado, possivelmente mal-amado, que nunca dera as caras em Santa Teresa, apareceu no Largo dos Guimarães, local de maior circulação de pessoas no bairro – moradores e turistas – e, sem fazer cerimônia, deslanchou sua ira: “bairro de maconheiros e esquerdistas”.

A histeria do parlamentar não chegou a ser uma ofensa, pois Santa Teresa é mesmo meio “relax”: as pessoas só querem viver “na boa”. O que causou estranheza mesmo, foi o fato de o homem estar com os olhos arregalados, esbugalhados, berrando e espalhando perdigoto para todos os lados. Parecia endemoniado, que tinha enchido o pote de Pitu ou cheirado porcaria.

Bastaram três senhorinhas animadas e bem-dispostas para enxotar o deputado: “miliciano, assassino, fascista... Não te queremos aqui. Mete o pé”, gritaram elas, iradas. O encosto ruim que dominava o homem não teve nem tempo de cantar pra subir. Espumando de raiva e medo, o nobre parlamentar bombadão enfiou o rabinho no meio das pernas e saiu fora...

“Na segunda noite,

já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão,

e, não dizemos nada”.


Largo do Curvelo

Nessa mesma época, uma grande confusão se instalou em razão da retirada da banca de jornal de “Seu” Souza. Os moradores reagiram, protestaram, saíram em defesa da permanência da banca e um grande embate começou. Para os moradores, a culpa de toda confusão é da Imobiliária Cláudio Castro, que vive da exploração imobiliária e desejava utilizar o calçadão onde banca estava instalada para colocar mesas e cadeiras do Bar “Armazém São Joaquim”, reformado e alugado pela tal imobiliária.

Por tabela, os moradores “bateram de frente” com o site denominado Jornal Diário do Rio, que, segundo comentários, é de propriedade da Imobiliária Cláudio Castro. Ruim para a reputação do jornal, pois Santa Teresa é um tambor que faz ecoar e já chegou a diversas associações de moradores que o jornal não passa de um folhetim publicitário da Cláudio Castro e da exploração imobiliária e que deveria se chamar “Tribuna do Cláudio”. Pra polemizar ainda mais, dizem que o tal deputado endemoniado estava mancomunado com a Imobiliária e o jornal.

Parece loucura, mas o bairro, sempre acolhedor, virou a cereja do bolo, o preferido dos barões da exploração imobiliária. Mas isso vem de longe. Há alguns anos, quiseram fazer um grande complexo residencial no Morro dos Prazeres. Gentrificar, tirar quem mora, quem nasceu e cresceu ali, para colocar novos moradores.

O desejo insano de algumas pessoas é transformar Santa Teresa num bairro moderninho algo tipo Balneário de Camboriú ou semelhante à Barra da Tijuca, com seus condomínios fechados, cheio de hotéis sofisticados, bares com um novo design, muita modernidade.

Esses senhores já deliram com o sucesso da venda do “Condomínio dos Prazeres – um lugar pra viver e ver o Rio”, do “Residencial do Pereirão” – só para gringos, que teria como slogan: “um local que ultrapassa a barreira das línguas” ou do Shopping “Nova Fallet”, onde esses generosos empresários dariam emprego “apenas para as pessoas da comunidade”.

Não só empresários gananciosos querem “transformar” Santa Teresa. O bairro também sofre constantes ataques do poder público. É a embromação do governo estadual – de vários governos -, que se negaram a manter o bondinho circulando como os moradores desejam e, por incompetência, por uma questão de esquema, só querem saber de privatizar todo o sistema. Falar em bonde e esquema, faz lembrar muito especialmente do ex-governador Sérgio Cabral. Ele dava as cartas quando aconteceu a tragédia que matou o motorneiro Nelson e outras seis pessoas.

Um dia após a tragédia, Cabral deu o braço a torcer e, ao lado de seu secretário de Transporte, Júlio Lopes, comentou: “Nós deixamos sucatear o bonde.” Putz... Parece praga de morador, pois além de ter dado o braço a torcer, deu também o punho para as algemas. O moço, todo arrogante, todo prepotente, que tomava whisky Macallan com Eike Batista, teve uns probleminhas com a lei. Bobagenzinhas, coisa de corrupção e lavagem de dinheiro e até aqui foi condenado a 400 anos de prisão. Sim, não são 40 anos, são 400 anos. Sucatearam com a vida de Cabral. Da mesma forma que o bonde nos faz lembrar Cabral, este necessariamente nos faz lembrar Júlio Lopes, que teria tentado culpar Nelson pela tragédia. Santa Teresa d’Ávila, que protege o Cine Santa e é justiceira, deve estar reservando alguma para o moço.


“Até que um dia,

o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada.”


Largo das Neves


Santa Teresa sofre com muitos ataques e perdas. Perdeu o direito de andar de ônibus, pois a linha 014, que ia até à rua Paula Matos, passando pelo Largo das Neves, ficou sem circular no auge da pandemia, enquanto as linhas 006 e 007, que iam até o Silvestre tiveram o número de carros reduzidos drasticamente. Uma realidade que mesmo com o pós-pandemia mudou muito pouco. Os ônibus, com o olhar indiferente do prefeito Eduardo Paes,

continuam sendo um problema para os moradores.

É um bairro mesmo curioso: por negligência governamental, a exemplo do bonde, o Hospital IV Centenário, que ficava na Almirante Alexandrino, foi abandonado e hoje é está entregue às traças. Desde que começou a ser “revitalizado”, o bairro não tem uma agência bancária, um açougue, um hortifruti, um posto dos correios, e, para piorar, seu supermercado também fechou.

Bares que se identificavam com o bairro também fecharam as portas. Quem não conheceu o Marcô e o Arnaudo não pode dizer que é Santa Teresa raiz. Alguns novos bares e restaurantes, sem sintonia com o lugar, cobram uma grana alta por uma cerveja e um preço absurdo por uma refeição. Muita gente pensa que os moradores são todos turistas e trazem os bolsos recheados de euro ou dólar. A opção dos moradores é descer para tomar cerveja na Lapa.

Santa Teresa perdeu filhos queridíssimos e ilustríssimos: Vicente Sábato, Regina Rocha, Robertinho dos Anjos, Jorge Salomão, Jorge Bola e Xandoca estão entre eles. Pessoas que lutaram por toda uma vida e fizeram do bairro a continuidade de suas casas. Fizeram do bairro um lar, doce lar. Bairro que afaga e acolhe. Por suas ladeiras desfilaram hippies descontentes que, ao som das guitarras de Jimmy Hendrix e da voz de Janis Joplin, se abrigaram ali, e do alto do morro desejavam paz e amor ao universo. Lar, doce “QG”, pra onde subiram guerrilheiros e, na cara dura, sequestraram o Cônsul em plena ditadura. Santa Teresa Phoda.

Apesar dos fortes ataques e de ter perdido muitas coisas e muitas pessoas, não perdeu sua essência, que é a dignidade. Um lugar de moradores incansáveis em preservar esse oásis de possibilidades no meio do Rio, no coração da cidade de São Sebastião.

Um território de gente que sempre foi guerreira e, simplesmente por isso, Santa Teresa é o único bairro na cidade que conseguiu manter o bonde. Não foi por acaso, foi em razão de muita luta. Perdeu muita coisa, mas não perdeu o bonde da utopia, de sonhar com um lugar onde se pode viver em paz.

Um lugar que será encantado enquanto badalar o sino do convento, a bateria do badalo, o belo rapaz passar feliz com um veuzinho do Carmelitas e, um mar de gente em festa, delirando com o Céu na Terra e pisando firme no chão. Gente que mantém viva a lembrança de um desfile que um dia aconteceu no Aconteceu e a alegria de Escorregar nos Trilhos tomando Magnifica.

Diria o poeta salomônico: “Sou o que Espalho”, e Santa Teresa espalha alegria, resistência, resiliência... Diria outro poeta: “É carioca ver o bondinho elevando o astral do Morro”. É muito carioca e muito chique flanar pelas ladeiras, ver o colorido da cidade ao anoitecer no Rato Molhado, sentar-se nos Largos – do Curvelo para ver a Bahia da Guanabara, do Guimarães para ver o frenesi dos turistas – “almas encantadas que ocupam as ruas do Rio" –, ou no das Neves para ver o sol se pôr. É indescritível se deliciar num baile funk nos Prazeres e ver o sol nascer

Santa Teresa é a própria Gaia, essa fonte que, com seu aqueduto, por anos saciou o carioca. Não dá pra se definir o silêncio dos trilhos, das portas, portais e umbrais. Impossível silenciar essa tribo que permanecerá batendo o tambor e fazendo a dança da guerra contra a exploração imobiliária, a insensatez da privatização, os políticos endemoniados de olhos esbugalhados, os milicianos, os picaretas mal-intencionados os mutreteiros e capachos de plantão...


Por ser um bairro, de artistas, poetas, cantores, compositores, sonhadores, sensíveis, pessoas incríveis, Santa Teresa sempre resistirá. Tá difícil, mas nunca foi fácil.


Por isso, não vão roubar a flor, não vão matar o cão, não vão pisar o jardim ou arrancar a voz da garganta...


Nota:

O poema “No caminho com Maiakovski”, atribuído por muitos erroneamente ao poeta russo, é na verdade de autoria do poeta mineiro Eduardo Alves da Costa.



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