top of page
Virgilio Virgílio de Souza

Audiência Pública na ALERJ escancara a "Segregação Institucional"

Atualizado: 11 de out. de 2021


“A carne mais barata do mercado

é a carne negra

Que vai de graça pro presídio

e para debaixo do plástico

e vai de graça pro subemprego

e pros hospitais psiquiátricos”.


“A Carne mais barata do mercado é a carne negra”. A Letra da música “A Carne” de Marcelo Yúca e Seu Jorge retrata bem essa realidade. Mais que isso: é uma permanente constatação de que ser preto em nossa sociedade continua sendo um quase crime, um objeto de perseguição, de segregação. O racismo e o preconceito por mais escamoteado que sejam, continuam vivos e em muitos casos invisíveis em nosso cotidiano, mas em outros casos, extremamente visível, como é o caso do absurdo do reconhecimento por fotos

A participação de um grande números de pessoas, principalmente de outros estados que participaram pelas redes sociais, mostra que o a perseguição aos pretos não é uma realidade restrita ao Rio de Janeiro


Os depoimentos de jovens em sua totalidade pretos que tiveram prisão decretada pelo denominado reconhecimento por fotos, é mais um capítulo desse história. Pretos julgados por representantes de um judiciário composto por pessoas predominantemente brancas, se tornam vitimas de um racismo estrutural/institucional de nosso código penal. A prisão por reconhecimento através de fotos, é uma injustiça latente que perdura por muitos anos e só muito recentemente passou a ser um assunto discutido e denunciado ganhando as manchetes dos noticiários. São relatos sempre fortes, comoventes, de fazer cortar o coração. Diria ainda Marcelo Yúka em outra letra: “Todo camburão tem um pouco de Navio Negreiro”.


A audiência Pública realizada na sexta-feira (08), no auditório da ALERJ – Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro – promovida pela Comissão de Direitos Humanos, só fez provar essa realidade. Os muitos relatos prestados na concorrida Audiência que aconteceu de forma hibrida causou muita comoção chegando a levar muitos dos presentes às lágrimas. A presidente da Comissão deputada Dani Monteiro(PSOL), oriunda de uma favela e que conhece essa realidade de perto em muitos momentos ficou com os os olhos lacrimejados e em outros não conseguia esconder a emoção. Num dado momento afirmou:

“Eu sei o que é isso. Eu sou de uma favela. Somos o Brasil que eles tentam silenciar e esconder”.

O encontro teve a participação de estudantes, deputados estaduais, representantes da Polícia Civil, Ministério Público, Defensoria Pública, Movimento Negro Unificado e também vítimas de prisões injustas feitas por meio de reconhecimento fotográfico.


A identificação por fotos ganhou grande repercussão em setembro de 2020, com a prisão do violoncelista Luiz Carlos Justino, da Orquestra de Cordas da Grota. O músico foi acusado de roubo pela 2ª Vara Criminal de Niterói. Contra ele, havia um mandado de prisão sob a acusação de ter cometido um assalto a mão armada após ser reconhecido, em 2017, apenas por um fotografia que constava no livro da 79ª DP (Charitas – bairro de Niteroi). Ele ficou quatro dias preso, em dois presídios diferentes, até que solto por decisão do juiz André Nicolitt, que demonstrou perplexidade com o caso:

"Por que um jovem negro, violoncelista, que nunca teve passagem pela polícia, inspiraria desconfiança para constar em um álbum?", questionou o magistrado.


Contraditório país: Por um lado, a publicidade e os mecanismos de poder convidam o negro para a "Sala da Casa Grande" e estampa nas manchetes dos noticiários e programas de entretenimento relatos de sucesso de casos isolados. Mostram a força do empreendedorismo, da meritocracia do povo preto e a ascensão dos pretos. Como é importante e causa orgulho a força dos manos e minas “bem sucedidos” de Sampa e das pretas cariocas com um visual poderoso/audacioso. Um pais anestesiado pela fantasia de uma Democracia Racial, onde acadêmicos, intelectuais com ar de indignação se manifestam em homenagem a George Floyd, e declaram: “Eu não consigo respirar”!!!


Por outro lado, entretanto, em nosso quintal, na "Cozinha da Casa Grande" a perseguição não são casos isolados. Desde a prisão de Carlos Justino inúmeros outros casos foram relatados e denunciados e sempre apontaram em uma mesma direção: a prisão por reconhecimento através de fotos quase que, inevitavelmente, tem em comum os jovens pretos. Os números não mentem. Estatística da Defensoria Pública mostra que, entre todas as pessoas presas injustamente no Brasil entre 2012 e 2020 por reconhecimento por foto, 86% eram negros.


Difícil Respirar

Além da morte física existe também a morte simbólica que acontece todos os dias nas esquinas, becos e vielas com a tapa na cara, a dura por documentos, a acusação sem nenhum fundamento, o flagante forjado e a identificação naquele livro de fotos empoeirado e jogado no fundo de uma gaveta qualquer das muitas delegacias espalhadas por este pais. O próximo passo a prisão, o fundo da cela, a solidão. Os negros brasileiros morrem, simbolicamente, todos os dias não só no subemprego, no desemprego, mas também, a exemplo de Floyd porque não conseguem respirar

Carlos Alexandre, Raoni Lázaro e Gustavo Nobre sem antecedentes e presos por reconhecimento através de fotos

O produtor Cultural Gustavo Nobre que mora no Catete (Zona Sul do Rio de Janeiro), e pai de uma menina de 7 anos, foi um dos que ficou asfiquixiado por essa rotina de repressão. Ficou preso por 363 dias no Presídio Romeiro Neto, em Magé, na Região Metropolitana do Estado acusado de ter realizado um assalto em 2014 no bairro do Flamengo. No entanto, no momento do crime do qual fora acusado, Gustavo estava na missa de falecimento de um amigo, no Catete, bairro próximo ao Flamengo.


Seu nome foi parar na livro de fotos de identificação da polícia simplesmente porque curtiu o post de um amigo no facebook. Resumo da ópera: curtiu uma postagem e acabou na prisão. Durante a Audiência, muito emocionado e não escondendo uma ponta de revolta com tudo que passou desabafou:

- O que passei foi uma grande covardia. O Estado com o argumento de uma medida preventiva não pode encarcerar uma pessoa. Me tiraram o direito de viver em paz, de ver minha filha e conviver com minha família. Só quem bota o pé dentro de um sistema prisional percebe o quanto é frágil e vulnerável.

Essa fantasia da ascensão e da meritocracia associada ao sucesso não é bem assim. Um exemplo que comoveu a sociedade e deixou muitas pessoas intrigadas e indignadas, foi o caso de Raoni Lazaro Barbosa de 34 anos, confundido com um miliciano, e preso em Nova Iguaçu, pela DRACO - Delegacia de Repressão a Ações Criminosas Organizadas. Sem antecedentes criminais Raoni é o que a sociedade considera uma “pessoa bem sucedida” e logo, deveria estar livre das acusações. É funcionário da IBM, Cientista de Dados formado na PUC com especialização no MIT, - Instituto de Tecnologia de Massachusetts -, nos Estados Unidos.


Sua prisão foi baseada num reconhecimento fotográfico e ocorreu no dia 17 de agosto de 2020. Ele ficou preso por 23 dias numa cela em Benfica, Zona Norte do Rio. Apesar de ter conseguido a liberdade através de Habeas Corpus, ainda existe um processo criminal que pesa sobre seus ombros e terá que continuar respondendo na Justiça. Ele não se conforma com o que aconteceu e com tudo que tem passado:

- Tudo foi muito ruim, pois falava, tentava argumentar e ninguém me escutava. No momento da prisão, cheguei a imaginar que fosse um sequestro ou alguma coisa do tipo. Me senti como se ainda estivesse vivendo a escravidão e perseguido pelos senhores de engenho, pois minha prisão só aconteceu em razão da cor de minha pele. A contradição disso tudo, é que avançamos tanto tecnologicamente que qualquer foto pode ser manipulada, alterada, mas nada disso é levado em consideração.


A injustiça nos faz ter medo e fazer coisas que jamais imaginaríamos. Esse é o caso do motoboy Cláudio Júnior Rodrigues de 25 anos. Ele adquiriu hábito de tirar selfies todos os dias quando acorda, ao chegar ao trabalho e quando volta para casa. É a forma que encontrou para se proteger, pois já foi acusado 14 vezes de roubo, em todas acusações a identificação foi realizada por foto em álbuns de suspeitos em delegacias.


Seu primeiro inquérito é de março de 2016, em uma delegacia de São Gonçalo, Depois disso, durante seis meses, foi acusado de participar de roubos na região e também em Niterói. Entre março e setembro já somava 14 inquéritos abertos. No último dia 20 de setembro, foi absolvido pela 13ª vez, porque, quando é submetido ao processo de identificação presencial, as vítimas não o apontavam como o autor dos crimes. No único julgamento que foi condenado em 2017, a vitima também não o reconheceu, mas ainda assim, a juíza o condenou a 5 anos e 4 meses, dos quais cumpriu 2 anos e 6 meses e foi colocado em liberdade condicional.

- É revoltante e constrangedor você pagar por um crime que não cometeu. Dentro do sistema prisional você passa fome, passa frio sofre muitas humilhações e quando ganha a liberdade, passa a ser visto como um criminoso. Eu convivo com essas lembranças todos os dias e me sinto muito abalado e inseguro. Dizem que o raio não cai duas vezes no mesmo lugar, mas comigo caiu várias. Meu psicológico está muito abalado. É algo que preciso estar trabalhando permanentemente.


A história do o técnico de enfermagem João Luiz da Silva chega a ser surreal. Ao voltar do trabalho foi avisado pelo vizinho que a policia tinha ido até sua casa procurá-lo. Como nada devia e nada temia decidiu ir à delegacia, pois imaginava que o fato de a policia tê-lo procurado estivesse relacionado a uma queixa que fez um mês antes, quando teve o celular e a carteira roubada num assalto que ocorreu no ônibus que estava. Nada disso: ele estava sendo acusado de ter roubado dois celulares e, por isso, acabou permanecendo seis dias preso através de um reconhecimento por foto.

.

Sem antecedentes criminais acabou solto após o MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro) admitir que errou ao considerar apenas o reconhecimento fotográfico. Mas a alegria durou pouco: uma semana após ter sido colocado em liberdade o TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio) decretou nova prisão por suspeitar que ele cometeu outro crime que teria acontecido no mesmo dia e no mesmo horário, só que em local diferente. A defesa de João Luiz já apresentou provas de que, no momento dos crimes, ele estava no hospital em que trabalha. No depoimento muito emocionado que prestou na audiência, ele diz que já não sabe o que fazer:

- Por mais que eu tente ser forte acabo muito triste com tudo que acontece. O sistema judicial prende as pessoas sem uma prova concreta, apenas através da identificação de uma foto. Isso não é justo, pois as vitimas são sempre pessoas das camadas menos favorecida, em síntese: pretos e pobres. Parece uma perseguição, precisam encontrar culpados e as acusações sempre vão numa mesma direção - comentou.


Matéria prossegue após o anuncio


Luz no fim do túnel


O delegado da Polícia Civil Gilbert Stivanello, que participou da Audiência de forma remota representando o secretario de segurança do Estado Allan Turnowski afirmou que o reconhecimento facial tem previsão legal no artigo 227 do Código Penal Brasileiro. Segundo ele, “a policia não procura um culpado, mas o culpado”. Ele lembra ainda, que além da policia participam dessas denúncias o ministério público, a defensoria, e o juiz e, com isso, a possibilidade de erros tem uma margem pequena. “Não nego que existam falhas, mas afirmo que essas falhas representam exceções” – afirma.


Sua opinião, no entanto, vai em sentido contrário a de Ongs, advogados, empresas, acadêmicos, militantes, políticos, intelectuais e estudiosos sobre o assunto. Pessoas das mais diversas áreas da sociedade que depois que tomaram conhecimento dos relatos de prisão por identificação de fotos despertaram para o assunto e tentam colocar um ponto final, ou pelo menos, frear o que consideram uma grande arbitrariedade.


Em Brasília deputados progressistas tentam mudar o código penal e acabar com a identificação por fotos. No Rio o deputado Flavio Serafim elaborou um projeto de Lei que proíbe livros de identificação por fotos no sistema prisional no Estado. Como o assunto é de competência federal ele não pode solicitar que se acabe com a identificação de acusados por fotos, mas pode criar uma lei exigindo que não sejam consideradas as fotos existentes nos livros de identificação uma vez que não se sabe exatamente a procedência dessas fotos


Além disso, no inicio de setembro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou um grupo de trabalho para elaborar diretrizes e procedimentos relacionados ao reconhecimento pessoal em processos criminais. O objetivo é aumentar a segurança na identificação de suspeitos e evitar a condenação de pessoas inocentes.


Na Portaria 209, que institui o grupo de trabalho, O CNJ afirma que “o reconhecimento pessoal equivocado tem sido uma das principais causas de erro judiciário” e cita um levantamento em âmbito nacional feito pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, que aponta que em 60% dos casos de reconhecimento fotográfico equivocado em sede policial houve a decretação da prisão preventiva e, em média, o tempo de prisão para casos desse tipo foi de 281 dias.

Comments


bottom of page