Carnaval, branquitude e cotidiano...
"Hoje
Negro é terra, negro é vida
na mutação do tempo
desfilando na avenida
Negro é sensacional
É toda a festa de um povo
E dono do carnaval”
Num carnaval predominante branco, Guanayra Firmino presidente da Mangueira é uma exceção por ser única presidente negra, dentre todas as agremiações. Silvio Almeida autor do livro "Racismo Estrutural", e, que representou o abolicionista Luiz Gama, talvez, por desconhecer o que "rola" nos camarotes e bastidores, afirmou que o carnaval é "a maior expressão cultural do povo brasileiro". Já Selminha Sorriso, da Beija Flor, por sua vez, indignada com as justificativas do jurado Fernando Bersot, que disse que ela teve "excesso de força" nos giros e não fixou o olhar no mestre-sala, o que ele considerou "quebra da harmonia do casal". Postou em suas redes sociais: " "Desculpe... Não sou bailarina... Sou porta bandeira".
Todo carnaval deixa suas lembranças, suas marcas. O de 2024 será lembrado pela queixa de uma grande parcela de negros contra o que denominam "a invasão da branquitude" numa festa criada por negros. No Rio, especificamente, a grita foi contra um corpo de jurados composto majoritariamente por brancos acadêmicos - dos 36, apenas três eram negros - alguns chegam a afirmar que muitos desses diletos julgadores numa pisaram em uma escola de samba, subiram uma favela ou conhecem a periferia. As queixas não param por aí: os pretos também invadiram as redes sociais para criticar o fato de todas as escolas terem presidentes brancos – à exceção da Estação Primeira de Mangueira, dirigida por uma mulher negra.
O carnaval desse ano contradiz e põe por terra o lindo samba enredo da Portela de 1972, de autoria David Corrêa (Cabana) e Norival Reis, eternizado na voz de Clara Nunes: “ Hoje, Negro é terra, negro é vida/ Na mutação do tempo, Desfilando na avenida/Negro é sensacional/ É toda a festa de um povo, e dono do carnaval”
Definitivamente, “negro não é o dono do carnaval”. Se bobear, nem é convidado, passa batido. Além dos presidentes, a branquidade se faz presente dentre os diretores de carnaval, verdadeiros mandada chuvas depois dos presidentes, onde em 7 das agremiações são brancos. No mundo mágico dos carnavalescos, a realidade é ainda pior: das 12 escolas, existem apenas quatro onde “pretinhos” fazem na Avenida, a magia acontecer. Algumas das rainhas das baterias são modelos brancas, que fazem meia dúzia de ensaios numa escola de dança qualquer e se acham o máximo.
Não só na Sapucaí, mas pelos comentários nas redes sociais e pelo observado nas ruas e blocos, a branquitude, ao som do melhor do funk - outro território de negros -, cantou a plenos pulmões: “Dominado, tá tudo dominado”. Se no passado proibiam a religiosidade, as danças, a cultura, agora acham bonitinho o samba, as danças, a capoeira, as rezas, e tentam, mesmo sem conseguir, entender essa coesão de energia de corpo, movimento, dança, ancestralidade que só o negro tem. Essa alegria, essa energia que é quase um estado de transe.
No passado, escravizavam, dominavam, rejeitavam, hoje cinicamente se apropriam sem nenhum pudor. Os "caucasianos privilegiados" que acham que tudo que é bom veio da Europa, desprezam ou ignoram a África. Para eles, essa fusão uma grande confusão. Montaram o tripé: escravidão, apropriação, evangelização e, muitos, ao que parece, querem normatizar e eternizar essa situação. Aos pretos cabem sair dessa arapuca.
Nas ruas do Rio, chamou a atenção na segunda-feira de carnaval, um gringo de quase dois metros que falava inglês e nem uma palavra em português. Portava um grande banner no meio do bloco “Comuna que Pariu”, com letras garrafais sugerindo que o carnaval era coisa do inferno. Lembrou muito os missionários da TFP - Tradição e Família e Propriedade. Isso sem falar em um bloquinho de evangélicos com um cartaz “Jesus vai te salvar”, desfilando entre os bate-bolas, na tarde de domingo, na Avenida Rio Branco.
A grita dos pretos vai muito além dos blocos e ruas do Rio de Janeiro. Os comentários nas redes sociais e noticiários apontam para as falas fora de propósito de Baby Consuelo, que com um belo cachê no bolso criticou a festa e foi ironizada por Ivete Sangalo dizendo que iria macetar o carnaval. Até a Xuxa deu pitaco na discussão. Mas Xuxa, Ivete e Baby é conversa de branco, de apropriação e evangelização, deixa pra lá... Dentre as muitas críticas à branquidade, um dos nomes mais citados e criticados foi do ex-carnavalesco Milton Cunha, que se transformou numa espécie de Galvão Bueno do carnaval: tudo sabe, tudo viu, tudo ouviu, de tudo entende, menos do que é ter no corpo e na alma o peso da cor da pele.
Essa coisa do embranquecimento do carnaval e a busca de resistência vem de longe. Não sem razão, em 1975 , Candeia, Neizinho, Wilson Moreira e Mestre Darcy, dentre outros, nomes que entraram para a história de nosso samba, criaram o "Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo". Localizada na Fazenda Botafogo, que, por decisão de seus criadores, nunca foi filiada a nenhuma liga carnavalesca, e nunca participou qualquer desfile competitivo. O objetivo da escola era resgatar valores originais do samba que, segundo eles, estariam se perdendo em meio ao Carnaval comercial, que excluía as comunidades.
Em 1974, também preocupados com a falta de espaço no carnaval e a apropriação da cultura negra, surge em Salvador, o Ilê Aiyê, ou Ilê. Percebendo a falta de espaço e a ausência de negros no carnaval baiano, que se tornara um destino apenas para turistas - uma realidade que hoje se repete no Rio. Lá, moradores do bairro do Curuzu, criaram um movimento cultural para resgatar e difundir a cultura de origem africana. Em língua iorubá, Ilê Aiyê, ou Ilê, significa “Mundo negro” ou “Casa de negro”. A primeira apresentação aconteceu no carnaval de 1975, com a participação de menos de cem pessoas. Na ocasião, foi apresentada a música “Que Bloco é Esse”, de Paulinho Camafeu:
“Que Bloco é esse, Eu quero saber, É o mundo negro que viemos cantar para você. Branco se você soubesse o valor que preto tem, tu tomava banho de pinche e ficava negro também”.
Carnaval, uma extensão do cotidiano
Alguns culpam os próprios pretos por essa realidade. Lembram que temos um prefeito branco, um governador branco, elegemos uma Câmara de Vereadores e uma
Assembleia Legislativa predominantemente branca e, em razão disso, o carnaval é apenas o reflexo do cotidiano. Algo do tipo: "Fechados com nossos estertores. Fichados por nossos estertores". Chegamos ao absurdo de um presidente branco com ar de deboche afirmar: "os negros deveriam ser pesados por arroubas". Willian Wak renomado Global declarar sem fazer cerimônias: “Isso é coisa de preto”.
Ali Kamel, seu temor ao " racismo reverso" e seu livro "Não Somos Racistas. O vice -presidente Hamilton Mourão, um pardo que pensa que branco, é outro que não concorda que tenhamos racismo no Brasil
Uma moradora de Bangu em postagem nas redes sociais se mostrava indignada: “Aos negros cabe desfilar, sorrir e tentar deixar transparecer que vai tudo bem, que está tudo normal. Parece que nos esquecemos de que somos tratados como pessoas de segunda classe, que andamos de trem ou ônibus lotados o ano inteiro, que somos as maiores vítimas das blitzes policiais com suas balas perdidas matando pretos e pobres. Se tivéssemos vergonha e atitude, boicotaríamos não só o carnaval, mas toda essa branquitude em nossas vidas” – um poste corajoso com muitos likes e curtidas.
As queixas fazem sentido. Todo topo da pirâmide é branco. O corpo de jurados do carnaval só reflete o cotidiano e essa hierarquia de poder. Se estão alijados do carnaval, onde exatamente os negros esperam ser reconhecidos? Se no corpo de jurados do grupo Especial, dos 36 exmo. senhores julgadores, apenas três eram negros, a realidade não é diferente nas cortes de justiça do país. No STF, por exemplo, depois da saída de Joaquim Barbosa - e lá se vão dez anos -, a corte é em sua totalidade branca.
Nossos ilustres jurados na Sapucaí tiveram que julgar um enredo sobre “Um defeito de cor” (Portela) e outro sobre “João Candido” (Paraíso do Tuiti). João Candido," o "Almirante Negro", é para os negros um herói, mas que ainda hoje é considerado um agitador, ignorado e não reconhecido pela marinha e seus brigadeiros literalmente brancos de corpo, alma e uniformes.
Cada vez, um número maior de negros sabe que: “Não veio do céu nem das mãos de Isabel a liberdade”. Sabem esses senhores, que a abolição foi forjada na luta de nomes de abolicionistas como André Rebouças, Luiz Gama, José do Patrocínio, Joaquim Nabuco e Francisco José do Nascimento – o “Dragão do Mar, isso sem falar na força feminina de Dandara, Anastácia, Luiza Mahins, Teresa de Bengeula, e Maria Firmina, dentre outras. A liberdade não veio das mãos da princesa, mas da coragem e bravura das muitas mãos escravas que, se indispondo contra aquela realidade cruel, provocaram muitos incêndios nas plantações e fazendas, deixando em polvorosa o privilégio branco.
Muitas dessas figuras brancas, orgulhosas com seus brasões “eurocêntricos”, fingem não saber da história dos negros. Fingem não saber das marcas das chibatas na pele e do sofrimento nas senzalas que permanece nas almas. Fingem não saber que os pretos – muitos deles, reis e rainhas -, nunca tiveram direito a brasões, jogados num canto qualquer de um tumbeiro. A cultura dos negros é para essa gente algo folclorizado, a religiosidade e a trajetória apenas historinhas. Mas muitos deles afirmam orgulhos: “Não sou racista. Tenho até um amigo negro”
No carnaval e no cotidiano não há “racismo reverso”, como temeu um dia o“ Clube Opositores” das Políticas de Ações Afirmativas, da qual faz parte o ex-diretor de jornalismo da TV Globo Ali Kamel. Em seu livro “Não Somos Racistas - ,(2006), Kamel se opunha veementemente ao Sistema de Cotas nas universidades temendo uma nação bicolor. Sabem esses senhores, que há uma mágoa contida, uma angústia permanente. Que a “Democracia Racial” não passa de uma balela. Sabem que há uma reflexão crescente dos pretos não só pela escravidão, e os anos de humilhação, mas principalmente por essa tentativa permanente de fazer tudo continuar rigorosamente como está.
Os negros perceberam que a universidade é um dos caminhos de ascensão. Os brancos já sabiam e, por isso, criaram tantos obstáculos, tantas dificuldades e se opuseram de forma tão veemente. Temiam ver os corredores e salas empretecidas. Ao ter acesso às informações, os negros constataram o óbvio: que o mal, as mazelas antes nos quilombos, hoje nas favelas e periferias, não veio da África e sim da Europa, um continente "civilizado" que escravizou, aniquilou, exterminou. São esses negros que estão nas redes sociais protestando contra a apropriação do carnaval e o eterno desejo de perpetuação.
Esse carnaval marcado pelo protesto contra a branquitude e apropriação da festa é o protesto que tenta avisar: Respeitem. Deixem de cinismo, parem de folclorizar. No carnaval, nas relações cotidianas, no trabalho, na universidade, em todos os lugares, parem de se acharem superiores, parem de achar que só vocês podem, que só vocês importam, pois as vidas negras importam. Se isso não for observado, é provável que essa mágoa histórica, essa angústia existencial, poderá se transformar no carnaval, nas relações sociais e no cotidiano, no tão temido, “racismo reverso”.