Finados: É preciso pensar em nossos suicidas...
A sociedade começa a se livrar do tabu, dos preconceitos e dos julgamentos equivocados e, encarara cada vez mais de frente, o problema do suicídio em nossa sociedade. Nesse sentido, a Alerj realiza audiência pública para discutir o tema na força policial
Quando na última quarta-feira, dia 27 de outubro, a ex-delegada Marta Rocha (PDT), juntamente com sua colega Mônica Francisco (PSOL), anunciaram uma audiência Publica para a próxima quarta-feira, dia 3 de novembro - um dia após o Dia de Finados -, para discutir os casos de suicídios nas forças policiais do Estado, olhei fixamente para as duas e pensei: Ao que parece a sociedade começa a despertar para uma realidade que por medo, preconceito ou covardia sempre insistiu em tornar invisível.
Monica Francisco e Martha Rocha vão comandar um audiência sobre o suicídio
O suicídio continua sendo um grande tabu, uma lacuna, um mistério. Achei curioso o fato de a audiência ocorrer por iniciativa de familiares, associações policiais, vários coletivos, grupos ligados à saúde, aos direitos humanos e às condições de trabalho. Será que a pessoas começam a despertar para um fato que faz parte de nossa realidade, mas que insistimos em não ver?
Descobri esse "tapa na cara" que é o suicídio, no último dia 20 de agosto quando meu irmão de 75 anos, inexplicavelmente, se valeu de uma corda e uma escada e, silenciosamente se silenciou. Na calada da tarde interrompeu a vida. Não era um irmão qualquer, muito menos um amigo qualquer, era uma pessoa muito especial que fez parte de forma muito próxima de minha existência nos últimos 55 anos. Era, de fato, um amigo de fé, irmão camarada.
Terminada a sessão na Assembleia, Martha Rocha se prepara para sair, me dirigi a ela e indaguei:
- Deputada o que esta acontecendo para se realizar uma audiência sobre os suicídios nas forças policiais. Há uma razão especial?
A parlamentar sempre muito educada e respeitosa no trato com as pessoas, demonstrando um ar de preocupação respondeu:
- A situação é muito séria, só nos últimos 15 dias três policiais cometeram suicídio. Há notícias de muitos casos de depressão, solidão e isolamento. Não podemos mais nos silenciar e temos que discutir o assunto. O suicídio é uma realidade e não podemos mais adiar algo tão sério em nossa sociedade.
Em seguida se prepara para deixar o plenário da Câmara a deputada Mônica Francisco, outra pessoa também sempre muito gentil, e faço a mesma pergunta. Com um ar de seriedade, ela se silencia como que buscando uma resposta e reafirma que o assunto é dos mais sérios e tem que ser encarado sob outra perspectiva:
- Temos que parar de postergar e discutir o suicídio com mais seriedade e detectar exatamente o que esta acontecendo na sociedade. Não é um assunto que diz respeito apenas às forças policiais, ao Rio, ao Estado ou ao Brasil, esse é um problema que atinge a sociedade mundial como um todo e tem que ser encarado. No caso especifico dos policiais temos que saber exatamente qual a origem de tantos casos de depressão, angústia, e mesmo de suicídios. Será a carga horária, a pressão do trabalho, a convivência com tantas mortes no cotidiano? Precisamos conversar e encontrar caminhos para essa realidade
As respostas ficaram bailando em meus sentidos - depressão, solidão, isolamento, falta de condições de trabalho, desespero, crise financeira...
Volto a pensar em meu irmão. Almoçamos no último dia 8 de agosto por ocasião de seu aniversário e nenhum desses sinais estavam estampados em sua face, em seus olhos, em suas palavras. Conversei com minhas sobrinhas, com minha cunhada, com meus filhos com amigos próximos e todos que conviviam diariamente com ele e todos tinham a mesma percepção: nenhum sinal dos famosos "sintoma suicida".
Desde aquele 20 de agosto fiquei extremamente reflexivo, buscando uma resposta, um sinal que pudesse explicar o suicídio de meu irmão. Uma necessidade perturbadora que se tornou uma constante em meus pensamentos.
Mergulhei no assunto e, nesse período de leitura, sobre o suicídio e os suicidas. , descobri, assuntos que ignorava totalmente.. Soube, por exemplo, que as estatísticas mostram que em cada caso de suicídio, ao menos, cinco pessoas do circulo de proximidade do suicida são atingidas de forma direta e passam a se culpar pelo ocorrido e perseguidas por perguntas do tipo: “porque eu não percebi, “Porque fui tão insensível”.
Em condições normais, durmo tarde, por volta de 1, 2 da manhã, e sempre que ia dormir, já bem sonolento meus pensamentos divagavam e ia parar em meu irmão. Recostava a cabeça no travesseiro e me colocava a refletir. No silencio da madrugada, vinha um aperto no peito, os olhos se enchiam de lágrimas, e, em alguns ocasiões bem irritado, desabafava no vazio do quarto: “Que merda você fez”, porque você fez isso”, “Babaca pra carai” “Escroto”, “Você não tinha esse direito”. Os pensamentos e a avalanche de desabafos me faziam ir para a televisão e só dormia por volta de 4h30 da manhã.
Números assustadores
Ainda no necrotério do cemitério em Barra Mansa – cidade de 200 mil habitantes do estado do Rio, onde foi enterrado me surpreendi: pelo menos cinco pessoas vieram prestar solidariedade e falar que eu e deveria ser forte, pois tinha passado por uma situação parecida e perdido alguém – pai, mãe, filho – nas mesmas circunstâncias. Fiquei intrigado e cheguei a acreditar que eram apenas palavras para me confortar.
Não eram. Passados algumas semanas decidi ler tudo que podia sobre o assunto e assistir alguns documentários sobre a temática.
Apesar do silêncio da sociedade, da omissão de nossas autoridades e de se procurar tratar o assunto de forma sigilosa, o suicido é a terceira maior razão de causa morte na sociedade mundial, só perdendo para a violência urbana e o câncer. Os dados da OMS e de órgãos internacionais de saúde são impactantes: No Brasil, cerca de 12 mil pessoas tiram a própria vida por ano, quase 6% da população. No mundo, são cerca de 800 mil de suicídios anuais. O Brasil só perde para os EUA.
No mundo, as notificações apontam para um suicídio a cada 40 segundos. No Brasil, a cada 46 minutos, uma pessoa tira a própria vida. Uma realidade devastadora quando se identifica o perfil das vítimas brasileiras: a maioria é homem, negro, com idade entre 10 e 29 anos, segundo dados do Ministério da Saúde avaliados nos últimos quatro anos e divulgados numa pesquisa em 2020.
Setembro Amarelo: Uma luz no fim do túnel
Meu interesse pelo tema só surgiu com a morte de meu irmão, mas a percepção sobre o suicídio da sociedade começou a mudar em setembro de 1994, nos Estados Unidos, quando Mike Emme um jovem de 17 anos cometeu suicídio. Ele tinha um Mustang 68 amarelo e, no dia do seu velório, seus pais e amigos decidiram distribuir cartões amarrados em fitas amarelas com frases de apoio para pessoas que pudessem estar enfrentando problemas emocionais.
A ideia acabou desencadeando um movimento de prevenção ao suicídio e até hoje o símbolo da campanha é uma fita amarela. Inspirado no caso Emme, o “Setembro Amarelo” chegou ao Brasil em 2015, através CVV - Centro de Valorização da Vida -, do CFM - Conselho Federal de Medicina e da ABP - Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
O mês passou a ser dedicado à valorização da vida e à prevenção ao suicídio. A campanha alerta que agir de maneira correta nas situações em que pessoas demonstrem interesse no auto-extermínio pode salvá-las. Diversas instituições, as secretarias de Saúde dos Municípios e dos Estados além do Ministério da Saúde, passaram a veicular campanhas de conscientização como essa abaixo feita pelo governo do Estado de São Paulo
Condenados e rotulados...
Numa sociedade na qual os valores estão fundamentados no tripé Estado, Igreja e Família os indivíduos que questionam, criticam ou de alguma maneira se insurgem são marginalizados – colocados à margem, por não se adequarem às normas. O desejo e o direito de não mais viver e morrer voluntariamente – onde podem estar inseridos muitos suicidas - é algo imperdoável para a Igreja, inadmissível para o o Estado e condenável para família.
O suicídio é uma atitude condenada em praticamente todas as sociedades, independente do sistema político ou religião. A Igreja Católica, por exemplo, que predomina no Brasil, só mudou seus conceitos de que o suicídio era um pecado imperdoável e passou a considerar a complexidade do assunto no CIC – 1992 - Catecismo da Igreja Católica - quando decidiu seguir conceitos da ciência e entender que necessariamente o suicídio não era tão imperdoável assim, reconhecendo que, “perturbações psíquicas graves, a angústia ou o temor grave de uma provação, de um sofrimento, da tortura, são circunstâncias que podem diminuir a responsabilidade do suicida”. Acrescentando “Não se deve perder a esperança da salvação daqueles que se mataram”.
Apesar de a Igreja ter mudado sua percepção de que o suicida esta condenado, muitos religiosos, católicos ou não, continuam acreditando que quem comete suicídio teve o passaporte carimbado para o inferno. Não bastasse estar condenado, a pessoa que tem pensamentos suicidas ou se suicidou é vista como um covarde, fraco e traidor. Além disso, há o peso dos profissionais de saúde que associam o suicídio a uma doença, um problema psicológico ou um quadro de depressão intensa.
Um dia antes o enterro de meu irmão uma pessoa da família, de 30 anos, que é católica fez um comentário totalmente desconectado da realidade, pelo menos, de minha realidade ao me dizer:: “É triste, mas esse é o único pecado que Deus não perdoa”. Apenas ouvi e me silenciei. Aconteceu também com um outro irmão que um dia após o enterro ouviu de um pastor neopentecostal: “Seu irmão esta condenado, Deus não perdoa um suicida, vai arder no inferno”. Em sua dor e muito indignado meu irmão perdeu a linha e chutou o balde: “Arder no fogo do inferno vão todos esses bispos e pastores de merda, que vivem falando besteiras, cobrando 10% de pessoas pobres e cometendo pecados em nome de Jesus.
A passagem de meu irmão me ensinou também que além de condenados pelas igrejas e rotulados como loucos ou depressivos, uma grande parcela da sociedade não se contenta e, para, além disso, tem a necessidade de marginalizar o suicida. Pessoas que por não entenderem as razões de um suicida precisam criar histórias fantasiosas. Exemplos de perguntas absurdas e insinuações cretinas são o que não faltam:
- Ele tinha uma outra relação fora do casamento?
- Ele tem filhos fora do casamento?
- Ele era usuário de drogas?
- Ele era homossexual?
Dentre as centenas de famosos que cometeram suicídios aparecem os nomes de
Walmor Chagas - Um veterano ator de teatro, cinema e televisão que cometeu suicídio em 2013 aos 82 anos em seu sítio no interior de São Paulo. O corpo do ator foi encontrado pelo caseiro após um disparo de arma de fogo.
Marilyn Monroe - Uma das mais belas e talentosas atrizes do cinema americano que cometeu suicídio em agosto de 1962 aos 36 anos. A polícia encontrou um vidro de barbitúricos (usado para tratar a insônia). A morte da atriz elevou nos meses seguintes o aumento do número de suicídios em 12%
Flavio Migliaccio - Ator brasileiro renomado cometeu suicídio e deixou uma carta à família em que diz que a humanidade “não deu certo”. Ele foi encontrado morto em seu sítio na cidade de Rio Bonito (RJ). Os amigos próximos descartaram desespero, angústia ou depressão. Entendem que foi uma decisão livre e espontânea
E se não for bem assim...
Uma frase atribuída a Rita Lee de certa forma coloca em xeque as definições da igreja e de muitos estudiosos. O suicida pode não estar deprimido e não acreditar que seu gesto seja um pecado. Pode entender que seu ato é um gesto de liberdade de escolha
Diria Nelson Rodrigues: “Toda unanimidade é burra”. E, se apesar do julgamento da igreja, da desqualificação social e da análise dos estudiosos da área a coisa não for bem assim?
E se o suicida não se considerar um covarde, um deprimido, um fracote e, que acima de tudo, entende sua decisão como um ato de coragem?
E se sua decisão foi consciente sem se deixar levar elo estigmas sociais?
E se levou ao pé da letra o conceito de livre arbítrio, sem se importar com os julgamentos religiosos, filosóficos, sociais
O livre arbítrio pode ter várias leituras, mas em sua forma mais simplificada quer dizer: “ é a capacidade de escolha autônoma realizada pela vontade humana e defende que a pessoa tem o poder de decidir as suas ações e pensamentos, segundo o seu próprio desejo, crença e/ou valores.
Um das provas das contradições e da maneira de se encarar o suicídio são os kamikazes - pilotos de aviões japoneses carregados de explosivos cuja missão era realizar ataques suicidas contra navios dos Aliados na Segunda Guerra Mundali e deixaram o confronto como heróis.
Também podemos olhar os terroristas e extremistas que amarram bombas ao corpo para explodir alvos de inimigos e passam a ser considerados mártires.
Na sociedade, de modo geral, o suicídio merece diversas interpretações, reflexões e divagações. Nesse contexto, o que dizer dos denominados “homens de bem” que matam ou bancam a morte de pobres nas periferias ou de religiosos pedófilos que condenam o suicídio, o aborto, mas estão na lista dos estupradores de criancinhas?
Nessa avalanche de pensamentos e reflexões e divagações penso nos muitos suicidas que decidiram ir ao encontro da morte sem depressão, sem bipolaridade, sem angústia ou medo fiz um poema para homenageá-los
Passamentos e Pensamentos
Penso nos homens,
em todos os homens
e, em especial, em um homem...
De tanto pensar
De tanto pesar,
De tudo pensar,
Indaga-me a beleza dos suicidas
. Não de qualquer suicida,
mas daqueles que abrem mão da vida
como se fosse um objeto qualquer.
. Penso na beleza que deve ser
olhar para os olhos da morte
e, com uma ponta de ironia,
com uma grande alegria dizer:
“Não temo você.
Não tremo diante de você”.
.
Feito isso, mergulhar ao encontro
do perfume e das cores de sua primavera.
Se deleitar, do encanto, magia e doçura
da namorada derradeira.
.
Quanta beleza há no suicida,
esses loucos que dizem não à vida,
que rompem o liame que une
o ficar e o partir.
Que rompem esse elo abstrato
que une a existência ao não existir...
. Quão misterioso é o suicida
Que pula do trem
Que toma veneno
Que aperta o gatilho
. Quanta audácia naquele
Que um dia acorda
olha pra vida
e prepara a corda...
. Quanta coragem no ato
de subir numa passarela
Olhar, pensar
Pensar, olhar e, sem palavras,
se atirar.
.
Ninguém sabe o que pensou,
ninguém sabe o que olhou
só se sabe sem saber exatamente o porquê,
Se atirou...
.
Ninguém sabe do amor suicida,
do amar suicida.
Na realidade ninguém sabe
exatamente nada do suicida.
Só se sabe que se suicidou.
.
Necessariamente uma pergunta fica no ar:
Porque você fez isso?
.
Para uns um ato de coragem e grandeza
Para outros um gesto de egoístico de fraqueza
Para uns uma basbaquice plena
Para outros pura nobreza extrema
.
Para o suicida um ato de realeza
de ter nas mãos o livre arbítrio
e o poder de decidir
olhar para vida
e ir ao encontro da morte
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