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Virgilio Virgílio de Souza

“O Rio se transformou em um amontoado de coisas”


“Adoro o Rio, mas exploração imobiliária, a falta de planejamento urbano a ganância transformaram a cidade de forma desastrosa”


Heloisa Pires Ferreira nascida em 14 de abril de 1943 e às vésperas de completar 80 anos é identificada em Santa Teresa, onde mora desde os 10 anos, por sua luta em prol do bairro, por seu amor e dedicação árvores, e o cuidado para com a preservação do verde e da natureza.

Em 2012, Heloisa realiza a exposição "Ciclos" no Canto da Carambola, um belíssimo casarão localizado em Santa Teresa


Exper em xilogravura, metal e desenhos em tecidos a artista conhece o bairro como poucos. Por um acaso da vida não nasceu no Rio. No inicio da década de 40 os pais moravam em Laranjeiras, mas durante sua gestação, sua mãe contraiu tuberculose, e a família se viu obrigada a se mudar para Teresópolis, só voltando a morar no Rio, exatamente em Santa Teresa quando completou 10 anos.

Professora durante 30 anos sua capacidade e criatividade fez com que acumulasse no currículo muitas viagens e prêmios. Lecionou na Escolinha de Arte do Brasil, na Escola Andrews e no Sesc Tijuca onde foi coordenadora e professora, de 1984 a 1999 e onde participou de importantes projetos, dentre eles, a organização das três edições do livro “Gravura Brasileira Hoje”. Em 1978 ganhou uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, viajou para Espanha e Portugal, onde frequentou a Cooperativa de Gravadores Portugueses. Depois disso, participou 2º Encontro de Animadores Culturais, em Monaga, Venezuela. Além do Brasil, seus trabalhos são reconhecidos em Portugal. Equador, Argentina, Uruguai, Paraguai e China.

Três obras elogiadas de Heloisa: "Constelação" - 1992; "Encontro no Repouso" -, 1978 e "Labirinto Laranja", 1973 - Todas em metal


Heloisa é uma pessoa leve e extremamente agradável para se conversar que demonstra ternura e carinho nas palavras. Curiosamente não gosta de conceder entrevistas e falar em público. Quando nos encontramos para essa entrevista, em seu apartamento em Santa Teresa, foi logo avisando: “Vou conversar com você, porque o conheço há quase 20 anos, tenho grande respeito e carinho por seu trabalho, mas entenda isso como um bate papo, depois você transforma em entrevista, matéria, no que você quiser”.

Agradeci, ficamos por um tempo falando sobre as transformações que ocorreram na cidade e só então perguntei: De que você sente saudades? Ela colocou a mão sobre os joelhos, cerrou os olhos e olhando para um ponto vazio que, possivelmente, se preenchia de lembranças respondeu:

- Sinto saudades de um Rio bucólico, tranquilo, sem tanta pressa, sem tanto carro e sem tanto prédio. Cresci em Santa Teresa e isso aqui não era como é hoje. Raramente você via um carro e o tempo do bairro, o horário que norteava nossas vidas era conduzido pelo passar dos bondinhos. Foram derrubando árvores e plantando prédios e o bairro mudou muito.

Não sem razão a artista fala com propriedade do bairro. A residência onde cresceu ficava bem no alto, um pouco acima da entrada do Morro dos Prazeres e, com isso, subindo e descendo as ladeiras foi observando as transformações que aconteceram no bairro e na cidade nesses últimos 70 anos.

Prossegue falando com carinho de todas as coisas que existiam e que se perderam no bairro:

- Quando falo que o bonde servia como termômetro de nossas vidas é porque de fato era assim que acontecia. Tinha que ir para a aula às 7h25 e se não aparecia, o motorneiro batia o sino várias vez até que eu chegasse. Cabe ressaltar que esse bonde ia até a sede do Lagoinhas, bem acima de onde vai hoje. No carnaval havia um bonde para as crianças fantasiadas e outros para as mulheres e às sextas-feiras havia um bonde fechado onde podíamos realizar nossas mudanças. O carnaval era um encanto. Gostava de ir aos desfiles. Fui algumas vezes com amigos assistir ao desfile da Mangueira com amigos e gostava de levar minha filha para ver o desfile do Bola Preta. Era tudo muito tranquilo e animador. Existiam mulheres grávidas, crianças em carrinhos, idosos e todos brincavam com paz e tranquilidade. Valia à pena descer o morro em época de carnaval.


A exploração imobiliária não pensou uma cidade para as pessoas viverem com o mínimo de conforto ou numa cidade arejada. Foi enchendo tudo de prédio e muitas pessoas que ocupavam esses bairros foram sendo excluídas, jogadas para lugares mais distantes.

Para além de Santa

À medida que ia contando, fascinava pelos seus relatos. É sempre bom e desperta curiosidade saber de um Rio que já não existe mais. Pergunto se os outros bairros seguiam esse ritmo de Santa Teresa. Ela esboça um leve sorriso antes de responder:

- Quando mais jovem gostava de ir para Paquetá, pois era um lugar limpo, tranquilo onde se podia tomar banho tranquilamente e sem medo da poluição. A Zona Sul do Rio, também era encantadora. Minha irmã quando se casou, no final dos anos 60, morava em Ipanema, e sempre ia visitá-la. Aquilo era outra coisa. Eram muitas chácaras, muitas casas e poucos prédios. O Rio foi se transformando lentamente sem que percebêssemos. Outro bairro que mudou de forma rápida foi o Humaitá. Trabalhava no Colégio Andrews na década de 70 e toda aquela área era quase que rural, com muitos terrenos baldios. A área da Tijuca onde coordenei uma oficina no SESC Tijuca, em 1984 é outro exemplo de total transformação da cidade. Era um bairro simples, com muitos casarões e pessoas acolhedoras. A exploração imobiliária não pensou uma cidade para as pessoas viverem com o mínimo de conforto ou numa cidade arejada. Foi enchendo tudo de prédio e muitas pessoas que ocupavam esses bairros foram sendo excluídas, jogadas para lugares mais distantes.

Obra "O Sol Negro" de 1978, em metal água e tinta que inspirou a capa do livro da filosofa Marilene Chaui


Ditadura e mudança de vida

Em 1967, aos 22 anos Heloisa decidiu se mudar para São Paulo e estudar na Escola Waldorf Rudolf Steiner dedicada a antropofosia que busca o equilíbrio entre mente, corpo e criatividade. A artista conta que era muito inibida e tinha dificuldades de convivência. Em sua volta ao Rio em 1968 passou a fazer parte de um grupo de artistas que realizava um trabalho social no Morro dos Prazeres, onde dentre outras coisas, eram realizadas palestras, debates e a exibição de filmes obtidos na embaixada do Canadá. Foi nesse momento que percebeu de forma mais atenta a mão de ferro da ditadura militar que proibiu todas as atividades do projeto.

- Sempre soube que existia, mas nunca tinha sentido de perto, foi com essa proibição que passei a tomar conhecimento de muitas coisas que aconteciam. Por duas vezes fui parada pela policia de forma abrupta e truculenta que me revistou. Me fez uma série de perguntas, pois estavam atrás de uma pessoa que diziam ser guerrilheira e que se parecia muito comigo. Só depois descobri que se tratava da Verinha (Vera Silvia Magalhaes) que era irmã da Ana Lúcia, uma pessoa muita querida no bairro e tia do André barros. Eles queriam perseguir, não importava quem fosse.

Conta que aqueles foram tempos difíceis, de muita perseguição e que acha estranho que pessoas nos dias de hoje defendam um regime de força. Lembra que de bom naquele período foi o fato de conseguir ganhar algum dinheiro com o trabalho que desenvolvia na Escola de Arte do Brasil que lhe permitiu comprar uma prensa.

- Naquele final de década de 60 tudo era muito complicado e assustador. Pessoas desapareciam e você realmente vivia com medo. O que me trouxe felicidade e alento na época, foi o fato de ter ganhado o suficiente para comprar uma prensa. Fico mesmo muito feliz com essa lembrança, pois foi uma grande vitória em minha vida. Naquela época não existia faculdade de artes e só conseguir lecionar em razão de uma carteirinha de notório saber que adquire graças à minha experiência profissional.


A AMAST e os bondes

A ligação de Heloisa com o bairro é tão grande, que é uma das fundadoras da AMAST – Associação de Moradores de Santa Teresa -, que existe há 41 anos. Confessa que fica frustrada e a até mesmo quando algumas pessoas questionam e criticam a entidade:

- A AMAST é fundamental para Santa Teresa. É uma luta de moradores abnegados que deixam suas casas, se reúnem preocupadas com os destinos do bairro. O maior exemplo da luta desses moradores é a preservação do sistema de bonde. Enfrentamos governadores, empresários e pessoas que de todas as formas tentaram nos tirar ou modificar os bondes, mas lutamos e resistimos. Não fosse essa luta contínua da Associação o bondinho já teria deixado de circular. Há também os tentáculos da exploração imobiliária que vive de olho nos casarões, além de pessoas que vivem defendendo a modernização do bairro. Ninguém é contrário à modernização, às transformações, mas temos que saber o preço que vamos pagar por isso. Nós que criamos a AMAST há 41 anos e citaria o Pedro Cascardo, a Ana Lúcia e o Paulo Saad, dentre muitos outros, pessoas que que se mantiveram atentas e lutaram todos esses anos em defesa do bairro. Fico extremamente feliz ao ver muitos jovens inclusive os das comunidades que cercam Santa Teresa rejeitando as transformações que querem nos impor e lutando em defesa do bonde. Isso serve de alento, mostra que nossa luta não foi e não é em vão.

Doce nas palavras e sempre atenciosa Heloisa é uma defensora do bairro e uma amante das plantas


Uma luta histórica

Para Heloisa a luta pelos bondinhos vem de muito longe e é histórica. Salienta que muitas pessoas tentam de todas as formas acabar com o bonde, mudar o perfil do bonde, mas que em todo esse tempo os moradores têm conseguido resistir:

- Muitas tentativas foram feitas na tentativa de nos tirar ou mudar o sistema de bondes. Em 1966 quando sofremos muito com as chuvas e Santa Teresa desabou essa tentativa foi muito forte. Já em 1959, já haviam comentários de que os fiscais das empresas de ônibus tentavam manipular o serviço dos bondes e até se cortava a rede de energia elétrica para que os bonde atrasassem e os moradores começassem a reclamar e, com isso, se implementasse os ônibus. Como grande ideia e como uma grande solução criaram a CTC, mas desde o início já se sabia que o objetivo era um processo de privatização. Hoje sabemos que essas empresas que passaram a prestar serviço em toda cidade são ineficazes, só pensam o lucro e se esquecem de que a finalidade de uma linha de ônibus é atender os moradores


Paixão por árvores

Heloisa não esconde seu amor e sua paixão pelas árvores. Tanto que mantém contato permanente com a Secretaria de Parques e Jardins e hoje trabalha no plantio de árvores no Morro dos Prazeres e na criação de uma compostagem com plantas medicinais na Praça Odylo Costa Neto:

- Minha paixão por árvore vem desde infância, mas intensifiquei essa paixão em 1976, quando subia escondido para plantar árvores no Sumaré e nas Paineiras. O Antônio que é meu companheiro me fazia companhia e abraçava a causa. Sempre que posso planto uma árvore. Existe ainda hoje árvores no Pico do Morro Dona Marta que plantei há 30 anos.



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