"Tenho saudades de uma cidade que não existe mais"
“Vi a cidade se transformando, percebi o silencio dos bondes que deixavam de circular e também lentamente e silenciosamente, os prédios irem surgindo e ocupando todos os espaços”
Dulce Wilmersdorfer é uma pessoa em movimento, que se movimenta e atenta aos movimentos que acontecem a seu redor. Nascida em 1947, veio de Petrópolis aos 20 anos para fazer universidade no Rio. Se formou em bioquímica e fez pós-graduação em biofísica na UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro –, na Praia Vermelha. Confessa que quando veio morar definitivamente no Rio, ficou absolutamente encantada. Indagada sobre as coisas que mais sente saudades ela com um leve sorriso e um brilho especial nos olhos, diz sentir saudades de muitas coisas e de uma cidade que não existe mais:
- Ah... Sinto saudade de muita coisa. Do som dos bondinhos que, silenciosamente, foram desaparecendo, e de uma cidade menos agitada e aglomerada. Vi também de forma silenciosa, as árvores cedendo terreno aos edifícios que iam surgindo e ocupando todos os espaços. São transformações lentas que não percebemos no dia a dia e quando damos conta, elas já aconteceram e já mudaram tudo ao nosso redor. Vamos nos adaptando a uma cidade nova que se renova a cada dia, mas fica em nós o pouco do romantismo e da saudade de todas as coisas. Andar de bonde era muito bom, o bonde cadenciava o ritmo da cidade. Há outra coisa que me trás uma lembrança de muita ternura que é um trem que vinha de Petrópolis ao Rio. Havia uma estação no alto da Serra e aguardávamos o trem e vinhamos lentamente em direção à cidade. O ar fresco da Serra ia ficando para trás e o calor ia nos invadindo. É incrível esse calor do Rio. Não há como não reter a imagem dos bondes e do trem...
Envelhecer...
"Na verdade não me sinto com 75 anos. Sou muito dinâmica e me sinto bem de pensamentos e sentimentos. Quando se chega a uma determinada idade, a condição física, o corpo como um todo começa a sentir os sinais do tempo e já não corresponde aos seus desejos e vontades. É preciso ir se reinventando. Era uma pessoa que adorava andar de moto, tanto que tinha duas, mas um dia um cara avançou o sinal, me bateu e embora não tivesse sido nada de muito grave, me senti frágil e desisti das motos, depois comecei a andar de bicicleta, mas o joelho começou a doer muito e hoje faço caminhadas. Na verdade, penso que o maior problema de envelhecer é a fragilidade. Não nos sentimos fracos, debilitados, incapazes, nada disso, mas entretanto, nos sentimos frágeis. Há um medo natural que não havia na juventude, o que acho perfeitamente natural. A experiência nos faz refletir, nos recomenda ter mais cuidados".
Antigos carnavais
Por seu perfil extrovertido, Dulce, naturalmente, deve ter sido uma pessoa que curtiu muitos carnavais. Quando perguntada sobre as transformações que aconteceram ele diz que a festa mudou radicalmente para pior:
- Quando conversamos, principalmente, com os mais jovens, fica parecendo que estamos sendo nostálgicos, saudosistas, mas não é exatamente isso. O carnaval, era bem mais romântico, divertido, encantador. Haviam concursos de fantasias nos clubes e de coretos nos bairros de subúrbios. Era uma época de bloquinhos pequenos, cordialidade onde se divertia muito. O que percebo é que a cidade e o comportamento coletivo foram se transformando e, consequentemente, isso refletiu no carnaval. Hoje não temos um carnaval da cidade e sim o carnaval da AMBEV e outras empresas preocupadas apenas em faturar alto. As empresas passaram a dominar tudo e ditam as regras. Parece que se acham no direito de comprar as ruas da cidade, os blocos e isso tira o brilho, a alegria e a esponteidade do carnaval. Tá tudo muito padronizado, os blocos vão ficando cada vez mais iguais e, por mais que fale do encanto do carnaval carioca, o que percebemos é que piora a cada ano. A prefeitura não tem um plano de organização do carnaval e a festa se transformou num encontro para as pessoas beberem. Na maioria dos casos a festa passou a ser um ponto de encontro de pessoas bêbadas.
Os tempos difíceis da ditadura...
Nas idas e vindas da conversa Dulce se lembra que desembarcou na Cidade dita Maravilhosa em 1967, mas relembra que a vida não era tão maravilhosa assim.. Chegou três anos após ter sido instaurada no país a ditadura militar que foi se tornando cada vez mais rígida.
- Estudava na Praia Vermelha, os dias eram agitados. A grande liderança dos estudantes era o Wladimir Palmeira. A barra era pesada dentro do Campus, com policiais nos vigiando permanentemente. Participei de passeatas de frente à ALERJ – Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro -, e vi muitos estudantes serem presos. Eu particularmente perdi duas amigas que foram detidas e com as quais perdi o contato. Como não tínhamos qualquer liberdade de expressão os militares justificavam as ações dizendo que havia mais segurança e que tudo aquilo era pra o bem da sociedade. Ainda hoje reflito sobre todos aqueles momentos, toda aquela agitação e por todas as coisas na qual tivemos que passar. Eram tempos, de fato, muito difíceis.
Transformações Políticas
"As transformações que aconteceu na política é algo que a incomoda extremamente. Em sua concepção, no passado os políticos eram mais sérios, tinham mais respeito para com a sociedade, mas o quadro que temos hoje é desolador, pois muitos desses senhores não demonstram qualquer compromisso com população, com a cidade:
- Nossa política ficou pobre de ideias, já não existem ideais. Os políticos já não tem uma ideologia definida, mudam de partido sem qualquer cerimônia e na maioria dos casos só atendem seus próprios interesses. A sociedade em período de eleição parece que fica meio anestesiada e elege pessoas com as quais não tem nenhuma identidade, parece que os votos são dados sem qualquer reflexão e isso faz com que tudo piore. Precisávamos refletir mais nossos voto. Os interesses particulares fez com que tudo piorasse do ponto de vista de qualidade. Continuo uma pessoa atuante, luto pela cidade e por meus direitos, sou participativa, mas não tenho e não quero vínculo com nenhum partido e nenhum político.
Enquanto existir vou lutar
Dulce sempre foi uma pessoa participativa e disposta a tentar mudar tudo que acha que não estar certo. Em 2018, depois de ver tantos desmandos e descasos por todas as partes da cidade decidiu criar o “Fórum da Cidadania” um grupo de pessoas, principalmente da sociedade civil que se mostram incomodadas com o desordenamento urbano e que hoje conta com a participação de Associações de Moradores, e moradores que embora não estejam vinculados a qualquer entidade, se incomodam com as transformações que a cidade sofre. A luta do Fórum nesse momento é contra o barulho e o excessivo número de mesas e cadeiras que ocupam as calçadas em toda cidade.
- Nas reuniões, audiências públicas e encontros dos quais participava vi que havia um número muito grande de pessoas insatisfeitas e conversando sobre a cidade, interessadas em colaborar com as transformações que ocorrem e então, na conversa com amigos decidimos criar o Fórum. A ideia deu certo, pois o grupo cresce a cada dia e já participamos de um encontro com o prefeito Eduardo Paes e conseguimos realizar uma audiência pública na Câmara dos Vereadores. Antes disso, porém, participávamos dos mais diversos encontros cujas propostas diziam respeito à cidade. Essa coisa do barulho e da ocupação das calçadas tomou uma dimensão insuportável. A falta de uma política que coíba, multe, fez com que os comerciantes, principalmente os proprietários de bares, restaurantes, casas de shows e quiosques passassem a agir sem se incomodarem com os vizinhos, numa total demonstração de falta de respeito. As coisas pioraram consideravelmente com a pandemia, era necessário que fizéssemos alguma coisa. Tivemos essa reunião com o prefeito em 28 de fevereiro, agendado pela Regina que é presidente da Associação de Moradores de Botafogo e vice presidente FAM- Rio - Federação das Associações de Moradores do Município do Rio - e teremos um novo encontro com o prefeito no início de maio e depois vamos ver como encaminhar essa luta.