Um encontro com Noel
- Virgilio Virgílio de Souza
- 2 de jan. de 2022
- 4 min de leitura
São Nicolau de passagem pelo Rio, explica a razão porque andava sumido, lamenta o negacionismo que assola o pais e o fato de os agitadores culturais de 2013 terem sido cooptados pelo poder.
Manhã de 31 de dezembro. Último dia de um ano difícil – foram muitas perdas. Voltando de uma caminhada matinal encontro sentado num banco da Praça Paris, na Glória, aquela inconfundível figura vestida de vermelho, tendo ao lado, seu inseparável saco e em cima do saco seu gorro. Era o queridíssimo São Nicolau, muito conhecido em várias culturas ocidentais e, para os mais íntimos, e, especialmente para os brasileiros, “Papai Noel”.
Sorrio surpreso. Esse velhinho faz parte da minha infância. Conheço Noel de outros carnavais, ou melhor, de outros natais. Pergunto como estava e porque tinha sumido tanto, pois desde o natal de 2015 não o vejo. Ele, demonstrando certa fadiga, parecendo mesmo estar de saco cheio, passa as mãos pela longa barba me olha com um olhar terno e responde:

O bom velhinho me fala das crianças migrantes, do sofrimento na Etiópia e do sofrimento infantil no Afeganistão
- Nesses últimos anos tenho andado ocupado me dedicando a crianças mais carentes na Etiópia e Etiópiae também com os filhos de migrantes na Europa. Dei uma passada no Afeganistão e só decidi dar um pulinho no Brasil em razão das enchentes na Bahia. A situação lá é muito delicada e as crianças precisam de um alento. Se o crápula do presidente, pelo menos resolvesse fazer alguma coisa, ficaria mais tranquilo, mas vocês escolheram um débil mental e negacionista para dirigir o país. Decidi dar uma passada no Rio, pois todos sabem o quanto adoro essa cidade. Não tenho aparecido, pois apesar de vocês terem pisado na bola e dado uma guinada para a direita, as coisas caminham... Vocês têm esse espírito de solidariedade, um acaba ajudando o outro, o que acho muito nobre.
Pergunto pelo trenó e pelas renas e ele responde com ar de tranquilidade:
- As renas e o trenó fazem parte de um processo mágico, aparecem quando quero. Ano passado não apareci em razão da pandemia. Por outro lado, existem muitos outros lugares onde muitas crianças além da pandemia enfrentavam a fome, as guerras, o abandono de governantes gananciosos.
Noel saca do saco uma moringa, toma um gole de água, coloca o gorro e me convida para dar uma volta. Saímos flanando. Passamos pelo Passeio Público e caminhamos em direção à Cinelândia. Ele fez questão de caminhar até o Palácio Gustavo Capanema. Lá tira o gorro, seus olhos ganharam um brilho especial e então, comenta:
- Aqui fizemos um belo movimento em 2013. Gostava da ideia do “Cultura é um direito”, “não vai ter Golpe” e toda defesa pela cultura. Aquele outro movimento do Reage Artista também foi muito bom,. Eram muitos agitadores culturais, artistas, intelectuais e muita música e energia. As pessoas estavam imbuídas do desejo de transformação. Me diga onde anda toda aquela gente, pessoas que queriam mudar o mundo? - Continuam lutando por uma sociedade mais justa e igualitária?

Noel se lembra do "Ocupa Minc", do Reage Artista" e de toda movimentação que tomou conta do Rio em 2013 e depois em 2016
Meio constrangido e sem graça, recorri a o primeiro pretexto que me apareceu tentando justificar o fato de não ter uma resposta precisa e convincente:
- A meu bom e velho Nicolau, depois de 2013 entramos numa furada e acabamos elegendo um bispo neopentecostal que detestava a Cultura, perseguiu as religiões de matriz africanas, ignorava o samba, a capoeira e se dependesse de sua vontade acabaria até com a festa de Noel. Certamente diria que se trata de uma coisa profana e sem sentido.
Noel me olhou carinhosamente e comentou: “ou você não quer me falar a verdade ou é muito ingênuo, mas não pense que não sei o que de fato aconteceu e vem acontecendo”. E prosseguiu:
- Reconheço que a cidade perdeu em muito sua potencialidade cultural com a administração desse dublê de bispo/prefeito ao qual você se referiu, mas muitas pessoas que falavam de forma contundente e lutavam por transformações acabaram por se transformar em “Guardiões do Crivella”. Por outro lado, nesses muitos anos que existo, aprendi que a parte mais sensível do corpo humano é o bolso. Entendo que muitos que contestaram o Eduardo Paes, que brigaram com o Paes e o repudiavam, hoje caíram em seu colo e se transformaram em seus amiguinhos arrumando uma boquinha na Prefeitura. Foram cooptados e se silenciaram. Bom para o prefeito que calou lideranças em potencial que poderiam questionar essa mesmice da política, bom para essas pseudos lideranças que conseguiram um crachá e garantiram uma graninha no bolso. Não será novidade se, com desejo de uma ascensão maior, daqui uns dias, estiverem nas ruas fazendo campanha para o PSD. Como vocês dizem: “Tá tudo dominado”. As lideranças foram cooptadas, se tornaram assalariadas e vida que segue.
Dito isso, Noel me convidou para uma água de coco, tive que pagar, pois em sua bolsa só havia liras turcas. Tomou sua água, caminhamos até o Aterro do Flamengo, pediu para que eu não desistisse ou ficasse desestimulado com os que deixaram se cooptar garantindo que muitos daquele movimento não estavam comendo na mãos do prefeito ou do governador e continuam íntegros e empenhados na luta por uma sociedade mais justa. Segurou em minha mão de forma carinhosa e fez um comentário em voz baixa: “a liberdade não tem preço”.
Em seguida assoviou e no gramado, atrás do MAM, apareceram as renas trazendo o trenó. Ele subiu e com um leve sorriso nos lábios me disse: ‘Não te falei que o trenó é um processo mágico. Me desejou um Feliz Ano Novo!” e desapareceu sobre a Baía da Guanabara.

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