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Virgilio Virgílio de Souza

Uma trajetória que se confunde com a história da Lapa

Aos 86 anos, “Seu” Chico, fundador do Restaurante Nova Capela relembra uma cidade que não existe mais


Conversar com Francisco Almuzara Soares é uma dádiva. É a possibilidade de um verdadeiro aprendizado sobre as muitas transformações que a cidade sofreu em suas manifestações culturais, arquitetônicas e de costumes nos últimos 70 anos. Aos 88 anos, “Seu” Chico como é conhecido chegou ao Rio aos 16 anos e é um dos fundadores do Restaurante Nova Capela, que se transformou num dos mais tradicionais restaurantes da cidade.

Seu" Chico muito gentilmente foi mostrar exatamente onde funcionava o Restaurante Capela antes de se transferir para a Avenida Mem de Sá e se transformar em Nova Capela. O restaurante ficava quase que de frente à Sala Cecília Meirelles, distante dos Arcos da Lapa e muito próximo ao Chafariz e da Igreja da Lapa


Simpático, atencioso e completamente lúcido, esse espanhol de Santiago de Compostela ao falar do passado deixa claro que sua trajetória, se confunde com a própria história do restaurante e da Lapa. Em muitos momentos seus olhos chegam a brilhar num misto de nostalgia e felicidade. Lembra com detalhes essa cidade que não existe mais e fala do restaurante que existia no Largo da Lapa onde hoje existe a Praça dos Arcos:

- Era tudo muito diferente. No Largo da Lapa, as construções tinham o formato de um triângulo, e lá existia uma estação do bonde 13, que ia para a Praça da Bandeira, e mais 19 estabelecimentos, dentre eles – uma fruteria, um café, uma pastelaria, uma casa de instrumentos musicais, um cabaré, um comitê do Brizola, uma leiteria e, em meio a tudo isso, o restaurante Capela que era de propriedade de Sr. Manoel Soares*. Um dia decidiram tornar tudo moderno e destruir o Largo da Lapa, para que fosse construído um calçadão onde seriam plantadas árvores. Nunca entendi essa mudança, eram muitos estabelecimentos comerciais e residenciais que seriam destruídos para se criar um grande vazio.

Conta que foi um logo período de espera entre a decisão de se destruir o Largo e as obras se iniciarem e que essa espera agoniava a todos:

- Era um período de incertezas, não havia uma data para o início das transformações, a única coisa que sabíamos era que tudo aquilo iria ser destruído. Diante dessa indefinição que se prolongava eu e Ayres – "Seu" Ayres – sócio falecido há cinco anos -, que trabalhávamos no restaurante do Sr. Manoel Soares resolvemos fazer uma proposta de compra do espaço do Restaurante Capela com uma condição: pagaríamos parceladamente enquanto a demolição da praça não se concretizasse. Ele concordou e, então, compramos o restaurante. A demolição da praça demorou quase seis anos para se iniciar e só teve no início da década de 60, e sem sabermos o que iria acontecer então, decidimos comprar um espaço aqui na Mem de Sá onde estamos até hoje. Com isso, criamos o Restaurante Nova Capela. Foi um período de muita luta e dedicação, pois ficamos trabalhamos de forma árdua nos dois estabelecimentos por seis anos até que finalmente demoliram o Largo da Lapa, onde hoje é Praça dos Arcos.


Quando revive essas recordações estampa um sorriso que demonstra saudades. Sempre muito educado, elegante e falando em voz baixa, em muitos momentos como um garimpeiro em busca diamantes, chega a cerrar os olhos e pedir paciência para com essas suas lembranças. Se existe algo no qual “Seu” Chico, evita falar é sobre as muitas personalidades, políticos e pessoas de destaque na sociedade que passaram pelo Capela;

- Nessas mesas do Capela já sentaram malandros famosos, muitas personalidades do universo da música e da política brasileira assim como nomes internacionais, mas em respeito a essas pessoas não seria delicado mencioná-las. Penso que elas têm historicamente direito à privacidade e não seria correto expor seus nomes.


Obs*

Seu Manoel Soares era um imigrante português que inaugurou um restaurante no Largo das Lapa em 1903 num lugar onde teria existido uma capela e, em razão disso, o nome do Restaurante ser denominado Capela. No início da década de 60 inicia-se o projeto de demolição do Largo da Lapa. Em 1966, com a demolição do Largo, o restaurante muda-se para a Rua Mem de Sá, próximo aos Arcos da Lapa, onde funciona até hoje com o nome Nova Capela.


Uma cidade que se transformou


Apertando uma mão à outra, como se as mãos ajudassem nas lembranças, ele conta das muitas coisas que viu mudar. Em alguns momentos demonstra satisfação, em outros, certa indignação. Fala, por exemplo, das pessoas, da agitação da cidade e da violência que viu crescer por todos os lados:

- As pessoas eram mais tranquilas, mais seguras e andavam menos preocupadas. A cidade cresceu e trouxe mudanças que fizeram mal. Hoje as pessoas andam com mais pressa, menos sossegadas e parecem permanentemente assustadas. Vivemos um tempo de muitas atrocidades, assaltos, roubos o que não havia antigamente. Se existe algo que acho engraçado é a associação que as pessoas fazem da figura do malandro com a de alguém que fazia mal à sociedade e isso não é verdade. O malandro era um cara que sempre andava de branco, trazia um baralho no bolso e levava a vida de forma fácil. Nunca vi ou ouvi dizer que um malandro tivesse assaltado alguém, feito mal a alguém ou praticado assaltos. Com o crescimento da cidade e o aumento da população tudo foi mudando e larápios das mais diversas espécies passaram a ocupar todos os espaços. Ladroagem, passar os outros pra trás, se apoderar das coisas dos outros nunca foi malandragem. Um bom malandro jamais faria isso.


Quando indagado sobre a importância da Lapa em sua vida, ele esboça um sorriso, olhe para o vazio e comenta:

- Tenho 88 anos e 72 anos de Lapa. Nesse período que estou aqui vi muitas transformações, conheci muitas pessoas, vi a cidade se transformar, se modernizar. Muitas coisas gostei e outras não. Nunca entendi, por exemplo, as pessoas destruírem a arquitetura para construírem calçadas e plantarem árvores. Não sou saudosista, mas acho que a Lapa com todo aquele comércio, com toda aquela efervescência era mais romântica e mais bela. Sou grato a tudo que me aconteceu, a vida me tem sido benevolente. Recentemente destruíam uma arena que tinha na Praça dos Arcos e construíram uma praça vazia. Também não entendi. Não entendo a modernidade do vazio

Em 1966 o Restaurante Capela Fundado por "Seu Chico e "Seu" Ayres se transformava em Nova Capela um dos restaurantes que, com o decorrer dos anos, se transformou num mais conceituados do Rio de Janeiro


22 anos depois, o reencontro com a família

Um dos momentos mais emocionantes da conversa com “Seu” Chico foi quando relembrou sua volta à Espanha, 22 anos depois que tinha chegado ao Brasil. Nesse momento, os olhos chegam a ficar totalmente lacrimejados:

- Foi muito emocionante reencontrar meu pai. Quando deixei a Espanha e vim para o Brasil, ele era um homem parrudo, bem forte e até um pouco gordo, mas quando voltei e cheguei de frente a casa onde cresci e vi um homem magro e, de longe, fiquei olhando com atenção, tinha muita dúvida, não tinha a certeza de que aquela pessoa seria ou não meu pai e resolvi chegar bem perto. Ele me olhou fixamente e falou “meu filho eu nunca te esqueci. Penso sempre em você”. Nos abraçamos e choramos muito. Trago essa lembrança com muito carinho - comenta

Sobre redes sociais e pandemia

Quando perguntado sobre as redes sociais sorri e quando é solicitado a falar sobre a pandemia toma um tom bem mais sério: “Não dependo das redes sociais, pois não tenho interesse e acho que rouba muito tempo das pessoas. Tenho um celular que tem a finalidade de falar com meus filhos e nada mais. As pessoas vivem muito conectadas com as redes e desconectadas da realidade, não consigo entender bem isso”.

Quando fala da pandemia seu rosto toma um ar de seriedade e preocupação:

- Diria que estou feliz com a vida que tenho e minha trajetória. A morte não me assusta. Lamento porém, profundamente essa doença que cria um ar de desesperança, medo e preocupação nas pessoas, principalmente nos mais jovens. Eu nunca imaginei que veria uma coisa nessas proporções. Ninguém sabe exatamente o que fazer, ninguém tem uma resposta e estamos batendo cabeça e cada vez morrendo mais pessoas. A esperança é que essa vacina resolva de vez essa doença, mas nem disso temos certeza - finaliza.



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